sábado, 25 de agosto de 2018

Significados


Ninguém na família gostava de tatuagens. Sei lá por que eu fui fazer a minha primeira.

Lembro-me que um grande amigo tinha feito a dele. Não sei se foi isso que me empolgou.

Só sei que fiquei um dia inteiro, alternando entre minhas tarefas na agência e conversas com uma amiga, que mais tarde virou minha esposa, em uma divertida pesquisa de kanjis e seus significados.

Depois de muito estudar, chegamos aos kanjis escolhidos. Imaginava que minhas tatuagens precisavam de significado. Nada contra quem se tatua por outros motivos, mas o significado é a minha única motivação.

Por fim, a primeira foi 子 (ainoko), que tatuei em meu antebraço esquerdo. Simples. O significado literal é "filho do amor". A explicação que encontramos foi a de que os mestiços eram filhos de casais que não tiveram o casamento arranjado no Japão (Miai). A palavra era por si só pejorativa e foi substituída atualmente por ハーフ (Hafu), um derivado de "half".

Tinha achado bem legal a ideia até mesmo por ser um termo pejorativo, fora que "filho do amor" é muito mais interessante que "half breed".

Tatuei e a vida seguiu em frente!

Anos mais tarde, veio outra ideia. Tatuar um pakuá chinês e um cachorro tribal. Uma amiga do trabalho disse que tribais eram batidos e sugeriu que eu fizesse um cachorro de cordel, em xilogravura. Pesquisei referências na net e um amigo ilustrador fez o desenho. Daí, fui direto para o estúdio de tatuagem.

O significado? Cão é meu signo no horóscopo chinês. Fora que são criaturas adoráveis que me ensinam muita coisa. A mistura entre o cordel e o pakuá chinês também trariam essa minha genética "viralática" para a tatuagem.

O desenho ficou no centro das minhas costas, entre as escápulas e pouco abaixo do pescoço.

Sosseguei por uns bons 5 anos. Apesar disso, tinha em mente que gostaria de fazer mais uma. Foram negociações tranquilas, mas a esposa dizia não querer namorar um "gibi". Ou um membro da Yakuza. Estabeleci para mim mesmo que na próxima oportunidade, seria minha última tatuagem.

A ocasião surgiu no começo de 2018. Um amigo que é um excelente ilustrador começou a estudar  tatuagens e precisava de "cobaias". Aceitei o convite pela qualidade do trabalho dele e também por conhecer seu altíssimo nível de disciplina e dedicação. Tinha confiança de que, mesmo sendo um iniciante no ramo, a tatuagem seria muito bem feita.

Esta última é a que tem mais significados agregados em sua criação.

São dois leões de Okinawa, ou Shisa, ou ainda Fu-Dog e Komainu. Foram várias as maneiras de pesquisar no Google e encontrar referências para o desenho.

As estátuas são comumente vistas na entrada de templos no Japão. São guardiões protetores. Uma das lendas ou histórias deles é possível ler aqui.

A ideia seria fazer uma estátua no braço esquerdo com o kanji 夢 (yume) e no direito, outra com o kanji  (ima).

Resumidamente, o lado esquerdo corresponde ao nosso lado espiritual. Então, a estátua desse braço teria o kanji 夢 que significa "sonho". Isso porque eu gosto muito da história do Monge Takuan Soho, que instantes antes de morrer, pediu um papel com pincel e escreveu o ideograma.

Mesmo um conceituado monge budista como ele precisava do lembrete de que a nossa vida aqui é só um sonho. Assim, ele não se desesperaria com a proximidade da morte, um marcante momento em que nós "acordamos" desse sonho.

No braço direito, que representa o lado racional, estaria a outra estátua e o kanji 今  que significa "agora". Um lembrete para a minha racionalidade de que o passado não existe mais, é apenas uma lição e nunca pode ser uma tortura.

Uma marca para me fazer focar no presente, trazer discernimento para o que é necessário no aqui e agora, além de ser um símbolo para me ajudar com a ansiedade pelo futuro.

O tatuador é meu senpai no Aikido e trouxe, empolgado, ainda mais significados para a tatuagem.

Conversávamos muito sobre marcialidade.

O Aikido é conhecido como a arte da paz, harmonia e cooperação. Mas isso não quer dizer que não é uma arte marcial. Deve-se ter sempre em mente que seus movimentos podem causar muitos danos. Quem sou eu para me aprofundar e escrever sobre o assunto aqui, mas o ponto é que sou visto como muito "bonzinho" para fazer uma arte marcial. Tenho aflição de movimentos que podem quebrar dedos, cotovelos ou outras articulações.

Em paralelo a isso tudo, conversamos que as estátuas dos guardiões representam bem essa marcialidade: elas não são agressivas ou ferozes. Elas só ficam ali e aguardam. Apenas se for necessário vão utilizar suas forças para defender o templo.

Cheguei a pensar que as tatuagens são minhas armaduras, mas acho que significam mais: são meus amuletos.