terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Velho batuta

 

Tocava baixo na banda ZZ Top Cover SP. A genética ajudava. Sua barba crescia bem rápido e em alguns meses, chegou ao comprimento necessário.

Tinha largado seu último emprego para se dedicar à música, mas as coisas não andavam bem.

"É só uma fase!" — pensava. Além dos covers nas noites do Bixiga e Moema, investia pesado as economias que juntou em seu projeto de composições próprias. Só que os rendimentos das aplicações não estavam sendo suficientes para cobrir todas as despesas.

"Preciso de um bico!". Não queria nem pensar em fazer algo parecido com as atividades do último trabalho dito "normal". Ou seja: nada relacionado a Departamento Pessoal ou Recursos Humanos. Nada de planilhas, CLT, relatórios, orçamento de pessoal, processos seletivos ou dinâmicas de grupo estapafúrdias.

Tinha calafrios quando se lembrava de seu último chefe. O cara era um neurótico hipócrita. Ficava com a antena ligada procurando momentos de ócio de seus subordinados, mas como sentava no canto da sala, passava horas do dia resolvendo assuntos pessoais. Pesquisava preços de tintas para a reforma de sua casa, colhia tranquilamente seus morangos em Farmville e assistia a tutoriais de oito minutos sobre cortes de cabelo no YouTube.

A ansiedade desse gestor era grande. Aplicava tanta força no mouse, que quando o mexia, o atrito com a mesa emitia um som parecido com o de uma buzina de algodão-doce.

Mas eram tempos passados. Desistira de "ser alguém na vida", de pegar o trem lotado todos os dias, de fazer baldeações por corredores estreitos com milhares de pessoas, de ocasionalmente limpar micro-pingos de catarro na manga da camisa quando alguém espirrava sem colocar a mão na boca.

Tudo isso passou por sua cabeça num segundo, enquanto refletia sobre as escolhas que tinha feito na vida e no momento em que aceitou o emprego temporário de Papai Noel do Shopping Center Norte. Um cargo muito concorrido após anos e anos de um jingle inesquecível.

Não estava arrependido. A comprida e sedosa barba natural facilitou a escolha e começou a trabalhar logo no começo de dezembro.

As exigências eram simples: sorrir, ouvir os pedidos das crianças e não ter ereções.

Só que nosso amigo foi proativo: passava lindas mensagens e lições para os pequeninos e seus pais.

— Oi, Papai Noel!

— Ho... Ho... Ho... Olá, pequerrucho! Quantos anos você tem?

— 7 anos!

— E o que você quer de presente de Natal?

— Eu quero um iPad!

— Tenho uma coisa melhor aqui: um vale-lama. Se você chamar um amiguinho para brincar no parquinho mais perto da sua casa após um dia de chuva, você mostra esse cupom para o seus pais. Assim, você pode brincar lá mesmo se tiver lama e pode se sujar à vontade.

— ... Brigadu... — respondeu o menino, sem entender direito.

Com muita criatividade, distribuía diferentes cupons. Além do vale-lama, tinha também o vale-dormida na casa do amiguinho, vale-sobremesa extra, vale-brincadeira com os pais, vale-futebol na chuva e um vale-visita ao parque.

O mês foi passando, e como todos os trabalhos que exigem criatividade, mas que não valorizam os criativos, o saco de nosso protagonista foi se enchendo. Sem trocadilhos.

A cada criança birrenta, o humor do Papai Noel transitava entre a ironia e a completa acidez nas palavras.

— Eu quero o game "Unilever Dish Monsters 3D" para Kinect!

— Dish Monsters? Como é esse jogo? — perguntou o Papai Noel em um súbito lampejo de genuíno interesse.

— É um jogo que se passa na cozinha de uma casa! Bactérias alienígenas planejam o domínio da Terra e se alimentam da combinação de restos de arroz seco grudados em porcelanas. Para combater eles, você precisa lavar a louça com o detergente especial criado pela Unilever! Aí, você faz movimentos circulares com a mão direita, enquanto segura o prato com a mão esquerda! Assim, com o braço esticado na frente e mexendo o pulso, você liga e desliga a torneira!

— Olha só!

E o garoto continuou:

—  Se deixar o prato de molho na água quente, torneira da direita, você facilita a remoção do arroz seco na louça!

O Papai Noel não aguentou, interrompeu a criança e berrou com toda a força do diafragma:

— PORRA! ENTÃO, POR QUE CARALHAS VOCÊ NÃO LAVA A LOUÇA DE VERDADE E AJUDA SEUS PAIS?!

Silêncio no Center Norte. Um fato absolutamente inédito em quase 30 anos de existência, se considerarmos que era dezembro, poucas semanas do natal. Todos ficaram boquiabertos com o grito do bom velhinho.

O capitalismo. Em menos de 5 minutos, o burburinho voltou e todos continuaram com suas compras.

Nosso amigo natalino foi despedido do shopping, mas logo conseguiu outro emprego: uma agência de publicidade o contratara para fazer posts na FanPage "Papai Noel Sincero".

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Avenida das Nações Unidas

eu tenho
consciência
da minha
displiscência
para fazer versos.

leio
e sinto nada
igual
psicopata
só aliteração.

eu só
imagino
professor
de cursinho
lendo empolgado

a grande
ironia
é que acho
poesia
chato pra caralho.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Caguei

Rodando o copo e sentindo o aroma da bebida.
— Nossa, que cerveja é essa?
— É a gelada.

— Para mim, Muse é a melhor banda do mundo!
— Sabe a diferença entre a sua opinião e uma pizza?
— Não.
— É que a pizza eu vou pedir hoje à noite.

— Caraca! Faltam só 2 meses para acabar 2013!
— Permita-me discordar do que você falou. Anos são apenas enganações. O que muda entre o Natal e o Ano Novo? Nada! Seu dia vai ser o mesmo. Você vai dormir, acordar, trabalhar e fazer suas coisas.
— Foda-se.

— Comecei a ler Universo numa casca de noz!
— É uma bosta! Quando você conseguir ler uma tese de verdade, você vai ter meu respeito.
— Na boa? Caguei pro seu respeito.

sábado, 12 de outubro de 2013

Bode

Andava com bode de gente.

A situação piorou quando pegou mais um livro do Bukowski para ler. Gostava muito do estilo dele. Não era a crueza de como ele descrevia as cenas, a vida, as corridas de cavalo ou as trepadas. Era a maneira como Buk aloprava a intelectualidade.

Estava de saco cheio das pessoas que tentavam mostrar o tempo todo que sabiam alguma coisa. Sentido da vida: comer, reproduzir, sobreviver e se mostrar.

Aos poucos, evitava entrar em discussões. Há tempos que elas não têm o objetivo da iluminação, como os antigos filósofos queriam. Hoje, toda discussão é só uma batalha de egos. Tipo Pokemon. O importante é a vitória, mesmo que você se descubra como errado em algum momento.

Acho que era por isso que não conseguia ler na cama. Por mais que fosse um livro que gostasse muito. Deitado, não conseguia fugir da rajada de pensamentos metralhando sua cabeça.

Lembrou das vezes em que preferiu ficar calado para não se meter em uma conversa inútil. Seus amigos falavam sobre jazz na hora do almoço. Com um tom de voz muito alto e desnecessário. "Para que isso?", pensava. "Claro que é para mostrar aos outros que são descolados, cool e entendem de jazz.".

Era possível sentir no ar a ansiedade de cada um dos participantes do culturalmente rico diálogo. Arregalavam os olhos e nem prestavam atenção no que o outro estava falando. Só ouviam o suficiente para dar sua importante contribuição ao assunto. Aguardavam ansiosamente o momento e na primeira brecha, se aliviariam com a descarga de conhecimento represado.

Quando o clima ficava assim, resolvia não se meter. O que o deixava agoniado era quando via que falavam algo errado. Queria entrar na história e dizer a resposta correta. Mas se controlava. Era melhor deixar do jeito que estava.

Aos poucos eliminava do seu sentido de vida a necessidade de se mostrar. Ainda cometia alguns deslizes. Lembrou de quando queria espalhar indignação e mensagens para acordar os brasileiros. Queria escrever críticas sociais na internet. Queria ser formador de opinião. Queria protestar sem tirar a bunda da cadeira. Sonhava em se alistar no Sea Shepherd para participar do Whale Wars.

Tentou ser politizado e quis ser religioso.

O interessante é que ao assumir uma posição em qualquer um desses assuntos, e ainda escrever, ficava desconfortável. Sentia que havia algo errado. Acho que é porque lidava com as coisas de maneira absoluta.

Nada deu certo e não se envergonhava de ter falhado, e sim de ter tentado. Mostrar-se entendido de qualquer assunto era o que ele mais abominava. Queria assumir para sua vida que o importante era saber e não que os outros soubessem que você sabe.

Ficava pensando nisso tudo até adormecer, e com toda essa avalanche na cama, só conseguia ler no ônibus.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Esfinge

Todas as segundas e quartas, tem o curso de pós-graduação em Psicologia Hospitalar.

Clarice se formou na faculdade em 2002. Por conta das oportunidades disponíveis no mercado, iniciou um estágio em Recursos Humanos no segundo ano, mas nunca abandonou seu sonho de ser psicóloga na área da saúde.

Por conta desse desejo, mesmo na época em que estagiava e era efetivada no RH da Pássaros de Goiânia Construção e Vendas, fez quatro pós-graduações: uma em Psicologia da Saúde, outra em Psicossomática, além das especializações em Psicanálise moderna e Psicopatologia de Lacan.

E ia para a nova pós todas as segundas e quartas. Sempre com seus óculos de armações grossas azuis, seus cabelos soltos, na altura dos ombros, com reflexos loiros e seu tablet com teclado físico. Tinha uma coleção de sapatos sociais com um saltinho de 5 cm que combinavam com outro conjunto de terninhos sociais.

Chegava às aulas geralmente com um pão de batata, mas dependendo da pressa (e das nóias com o peso) às vezes recorria a seu estoque de barrinhas de cereal, que sempre comprava em um atacadista perto da empresa.

Cinco anos de faculdade até 2002, mais quase 10 anos de pós-graduações, e ainda assim Clarice continuava pensando em descobrir um manual de instruções ou guia infalível ilustrado para o comportamento humano.

Assistia demais a séries como "House", "The Mentalist", "Bones" e "Lie to me". Achava que conseguia reparar nos mesmos detalhes que os protagonistas dos seriados, tanto em entrevistas de processo seletivo na Pássaros de Goiânia, quanto em seus escassos atendimentos psicoterapêuticos.

Apesar do forte barulho "toc-toc" que seus sapatos faziam no chão a cada passo que dava, Clarice parecia flutuar no ar. Fazia questão de olhar nos olhos das pessoas com quem conversava.

A máscara de psicóloga clínica nunca saía de seu rosto. No trabalho, quando atendia a algum funcionário da empresa, tinha o seguinte ritual:

— Bom dia, Clarice! Posso tirar uma dúvida com você?

— Claro! — respondia. E tirava os óculos, deixava sobre a mesa e colocava a mão direita no queixo, com o dedo indicador na sua bochecha apontando para a orelha. Era um detalhe importante que tinha lido em um livro de linguagem corporal: seu dedo indicava o ouvido para mostrar que estava aberta a ouvir.

Enquanto falavam com ela, Clarice fazia uma expressão facial de profunda reflexão sobre o que a pessoa estava dizendo. Franzia a testa, sorria e acenava discretamente com a cabeça para mostrar concordância. Quando necessário, também fechava levemente os olhos e contraía a boca. Tudo dependia do assunto tratado. Ela tinha um leque enorme de expressões para incentivar quem estava falando.

Quando Clarice se formou na faculdade, passou a sentir que podia conversar de igual para igual com seus professores. Agora, eles são colegas de trabalho. Uma postura que digamos, tumultuou todas suas aulas em todos os cursos de pós-graduação que fez.

Porém, a gota d'água foi na última quarta-feira.

O professor discutia um caso clínico de outra aluna com a sala de aula. Em algum momento, ele pediu para a aluna investigar melhor o caso com o paciente.

Citou uma recente pesquisa relacionada ao assunto. Os resultados do trabalho em questão denunciavam várias inconsistências nos comportamentos e reações do paciente da aluna. No caso, ele seria uma gigante exceção a uma forte tendência comportamental.

Claro. Exceções podem ocorrer. Pesquisas não são manuais de comportamento humano. O professor pediu apenas para a aluna investigar melhor. E ela aceitou o conselho.

O problema foi quando Clarice resolveu se meter no debate. Parte por necessidade de autoafirmação, parte por não respeitar muito aquele colega de trabalho que ministrava aulas. Contou um caso clínico parecido e questionou:

 — Quer dizer que ela não pode acreditar no paciente dela? E a relação de confiança? Comigo aconteceu algo bem parecido! — a ironia aqui é Clarice ser fã de House, que afirma: "everybody lies!".

A discussão continuou por alguns minutos. Na cabeça de todos, a balança pesava: trabalho de pesquisa internacional X crazy bitch com três casos clínicos na carreira.

E prosseguiu. Duas alunas aproveitaram para ir ao banheiro. O professor bufava. A mais novinha do curso dormia na cadeira. Outra mulher acessava ao Facebook.

O único homem da sala, com 1,90 m de altura, ficou puto. Levantou da cadeira dele e foi em direção à Clarice.

Como um príncipe, levantou-a nos braços.

E como um ogro, jogou-a pela janela da sala de aula, no corredor da universidade.

Ele foi expulso do curso. Clarice vai voltar na segunda seguinte.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Testosterona

Luiz é um quase famoso lutador de MMA, conhecido apenas por alguns entusiastas do esporte.

Continua invicto no circuito que participa. O cara é faixa preta 5º dan em Karatê Shotokan, Jiu-jitsu e treinara alguns anos de Hap-ki-do.

Luiz sempre foi baixinho e seu pai sempre lhe deu o mesmo conselho para evitar que tivesse problemas com bullies:

— Se alguém aprontar alguma coisa com você, revide logo na primeira vez. Lembra o Sr. Barriga? Em algum momento, o Seu Madruga deveu apenas um mês de aluguel. Foi o próprio Sr. Barriga que deixou a dívida chegar a 14 meses.

E matriculou Luiz em uma academia de Karatê, que por sorte, adorou as aulas. Pouco a pouco, Luiz foi se tornando um mestre da arte. Executava os katas com perfeição e era imbatível no kumitê.

Seu futuro nas artes marciais era inevitável. Após conquistar a faixa preta no Shotokan, o próximo estágio foi aprender jiu-jitsu, arte que treinou com muita dedicação.

Claro que existe talento envolvido, mas Luiz era fissurado no esporte. Treinava todos os dias, mesmo quando não tinha aula. Praticava mais de 100 vezes cada tipo de chute. Filmava a si mesmo fazendo os katas para aperfeiçoar os movimentos.

Com a popularização do MMA, não deu outra: Luiz mostrou-se empolgado e investiu na carreira. É conhecido como o Impala Maldito.

Ironias a parte, Luiz é gay. Ninguém acreditou quando ele assumiu sua orientação. A primeira luta após a "saída do armário" foi polêmica.

Fábio "Pé-de-aríete" Johnson provocou bastante. A homofobia foi perfeitamente aceita como forma de intimidação. Gritou na coletiva e pesagem:

— Esse viadinho pensa que vai me vencer? Eu vou destroçar esse cara! A bundinha dele vai até pedir mais de tanto que vou foder a vida dele! Isso aqui é esporte pra homem, cara!

Luiz deu de ombros, beijou a palma da própria mão e assoprou o beijo para Fábio, que ficou emputecido. O adversário teve que ser segurado por sua equipe. Aquele drama todo. No fim, foi bom: toda essa cena chamou a atenção da imprensa.

A luta teve uma boa cobertura da mídia. Dedicado como era, o resultado não poderia ser outro. Luiz venceu com um nocaute ainda no fim do primeiro round. Sua baixa estatura facilitou a desferir os socos em curta distância, que pegaram no queixo e têmporas de Fábio. O adversário chegou a convulsionar um pouquinho quando caiu desacordado no chão.

Após a vitória, ainda no octógono, Luiz pegou o microfone e falou irônico:

— Bom, e que fique sempre marcado na carreira dele: foi destruído pelo viadinho! Chupa! — e saiu do ringue.

Na segunda seguinte, Luiz "Impala" era o grande assunto nas redes sociais, assim como o Nick Newell tinha sido meses antes.

Inúmeros posts sobre homofobia foram publicados. Perguntavam: quem é macho de verdade?

Luiz respondeu em seu Facebook: "Meu pai sempre me disse que era importante eu ser macho, lutar pelo que acredito até o fim e nunca deixar chegar aos '14 meses de aluguel'. Se é assim, eu acredito que sou o mais macho que existe. Estou invicto há 10 lutas, tive coragem de revelar minha homossexualidade no universo MMA e de apresentar meu namorado à toda minha família no reveillon. É o que sou e não tenho medo disso. Acho que todo mundo tem medo de aceitar o que é. Só que coragem não é ausência de medo. É agir apesar do medo.".

O bum durou mais algumas semanas. A carreira do Impala continua. Sua luta também. Ele ainda é um dos seres humanos mais machos que já existiram, e não é porque luta MMA.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Dog person



Embora eu goste muito de gatos, entendo que as pessoas me rotulem de "dog person".

Invejo os cães. Nunca escondi isso. Acho que realmente temos muito o que aprender com eles e estou sempre tentando tirar lições ao observá-los.

Faz meses que observo a relação de meus dois vira-latas, Barry White e Marvin Gaye.

O Marvin chegou dois anos depois de termos adotado o Barry e a relação entre eles é muito engraçada.

No começo, fiquei bem preocupado com as brigas. Confesso que não entendia os motivos. Não sei bem o que eles "conversam", nem que mensagens passam um ao outro.

O ponto é que, no resto do tempo, eles se dão bem, brincam e relaxam juntos.

Aí, veio a reflexão. A gente imagina que o relacionamento ideal é aquele tranquilo em que tudo dá certo, como nos grandes clichês das propagandas de margarina.

Os cães me ensinam todos os dias que a crueza da realidade no mundo não é tão ruim quanto os humanos pintam.

Fazendo a devida conversão, pessoas brigam. É inevitável.

A lição aqui é a maneira como os cachorros lidam com isso. Alguns vão dizer que eles têm aquela felicidade exagerada porque são ignorantes. Eu discordo.

Acho que cães são felizes por conta da relação deles com o tempo.

Não importa que o Barry mordeu o pescoço do Marvin em algum momento da tarde de ontem e doeu. Eles vão brincar hoje e vão se divertir.

O Barry não fica pensando se o Marvin vai roubar seu brinquedo amanhã. Ou se vai precisar dar uma mordida nele daqui a um mês.

Nenhum deles fica se remoendo por algo ruim que aconteceu ou por preocupação com algo de ruim que pode estar por vir. Simplesmente vivem o presente.



Gato ou cão, já parou para imaginar o que você pode aprender com seu bicho de estimação? O que você acha que ele teria para te dizer? Qual conselho ele te daria? O que ele faria no seu lugar?

Imaginar essas respostas ajudam bastante no meu dia a dia.

Mesmo que a solução possa ser: "OLHA! UM ESQUILO!". Até dá para tirar uma lição importante. Questão de interpretação.




Faça o teste!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Nárnia?

Rodrigo era motion designer em uma agência de publicidade online. Um cara descolado. Tinha em seu guarda-roupas 15 camisas xadrez de diversas cores. Era seu plano de emergência para ficar sem usar a máquina de lavar por uma quinzena e ainda assim, não repetir roupas no trabalho.


As calças jeans ele repetia. Mais de 3 vezes por semana. Não havia problemas. "Elas não sujam mesmo!" — dizia.

Passou a infância inteira em Araguari. Acabou herdando o delicioso sotaque da região.

Seu caminho na carreira de motion começou de maneira informal. Criava gifs engraçados. Utilizava o Photoshop para tentar fazer charges animadas e contar algumas histórias.

O pulo do gato veio quando, autodidata, aprendeu a usar o Flash, aos 16 anos.

Conto essa história porque, aos 17, por um acaso estranho do destino, conseguiu estágio em uma agência de publicidade aqui em São Paulo. A mesma em que trabalha até hoje, com 25.

Esses 8 anos no ramo, mesmo após algumas promoções simples, mas com praticamente o mesmo cargo e atividades, tornaram-se bem chatos.

Ok! O ambiente, clima e as pessoas são bem diferentes de empresas comuns, que Rodrigo chamava de "coxinhas".

No mundo das agências, tudo é muito divertido e espontâneo. Piadas, comentários do último vídeo da Porta dos Fundos ou sobre algum site inovador que pega seus dados no Facebook e faz montagens com as fotos dos seus amigos em animais dançantes, ao som de alguma sátira de "dumb ways to die".

Tem sempre alguma coisa nova rolando nos papos. O problema era a disputa diária para ver quem sabia mais das inovações que surgiam.

— Você viu o aplicativo novo da Diesel? NÃO VIU? Não acredito! Vou te mandar o link para baixar! É muito louco, cara! Muito louco!

Rodrigo percebeu que uma das coisas mais prazerosas de sua vida era responder "Ah! Eu já tinha visto!" a esse tipo de pergunta. Foi aí que começou a pensar mais sobre o futuro que queria para sua carreira.

Um dia, recebeu em seu e-mail mais uma série de ofertas do Peixe Urbano. Antes, deletava essas mensagens sem ao menos ler, mas dessa vez, resolveu dar uma olhada.

— Um curso intensivo de sapateado por 250 reais! Uma semana, todos os dias e em período integral, das 8h30 às 18h30.

Comprou na hora. Rodrigo era fã de Gene Kelly. Toda vez que garoava em São Paulo, "Singin' in the rain" tocava em sua cabeça automaticamente.

Decidira fazer o curso. Mas o que ele iria falar para seus chefes? Durante o fim de semana, depois de algum tempo refletindo, optaria pelo mais irônico.

E na segunda de manhã, telefonou para o tráfego da agência:

— Alô? Oi! Tudo bem? Olha só, eu torci o tornozelo ontem... Vou ter que ficar em casa de molho essa semana.

Para ter um bom álibi, publicou no Facebook a foto de algum pé com gesso. Só teve o trabalho de procurar nas imagens no Google e colocar a legenda: "De molho em casa :(".

Deu tudo certo no curso. Aprendeu os fundamentos, comprou os sapatos, conheceu a história da arte e treinou exaustivamente em casa. Descobriu que tinha talento. Fantasiou a semana inteira sobre como seria sua vida se conseguisse dedicar mais tempo à atividade.

Tantos sonhos fizeram o tempo passar rápido. Logo chegou a sexta-feira e na segunda seguinte, voltaria para a agência e sua vida normal.

Foi o que aconteceu. Os sonhos foram praticamente esquecidos enquanto usava sua brilhante criatividade artística para replicar os banners que surgiam em sua pauta de trabalho. Alguns atrasados da semana anterior.

Com tantos trabalhos para por em dia, essa semana também passou rápido.

Toda a equipe de criação resolveu fazer um happy hour para aproveitar a noite, que estava quente e agradável.

Fecharam uma garrafa de cachaça. Mesmo beliscando diversas porções de provolone e parmesão, depois de algumas doses, Rodrigo não conseguiu se segurar.

O álcool tinha diluído sua vergonha e ele começou a sapatear ao som de Anunciação do Alceu Valença. Fazia mãos de musicais de jazz, rodava com os joelhos no chão e ia até o banheiro andando de lado, tirando e colocando na cabeça uma cartola imaginária.

Desde esse dia, Rodrigo passou a ser conhecido pelo apelido de Nárnia: a cachaça, o queijo e o sapateado.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A difícil atualização da tecla "Foda-se".


Hoje de manhã, fomos correr com Barry White e Marvin Gaye, meus queridos vira-latas.

Sempre tive conhecimento de diversas fontes de adestramento e que é necessário um toque firme na coleira para controlar e educar o cão durante o passeio.

Como Marvin ainda não foi castrado, mesmo depois do exercício, ele ainda estava meio agitado. Corria, acelerava e queria ultrapassar o Barry que estava na frente. Por isso, eu o corrigia com o auxílio do toque na coleira. Até aí, tudo normal. Um desejo pela liderança de um cachorro na flor da puberdade esbanjando testosterona.

Eis que na rua, parou um sedan prata do meu lado com um senhor e uma mulher pouco mais nova e eles me chamaram.

Eu achei que eles queriam alguma informação. Aí, parei e me agachei para falar com eles.

Foi então que o homem me falou algo parecido com isto:

— Posso te pedir uma coisa? Não maltrate o cachorrinho. Ele é só um filhote! Se você não gosta, doa, mas não maltrata. Eu vi você puxando a coleira e enforcando o coitadinho.

Eu respondi:

— Imagina! Eu adoro eles... Isso é para correção.

— Mas você maltrata o cachorro. Ele é filhote!

Para não prolongar a conversa, abri um sorriso e respondi:

— Ok! Obrigado!

O carro foi embora e nós voltamos para casa.

Dessa cena, vieram as seguintes reflexões:

1 - Acho que tive a atitude correta de não prolongar uma provável discussão e resolver educadamente a história.

2 - Descobri que não sou tão zen assim. Momentos mais tarde, fiquei ofendido, chateado e puto da vida, ao pensar nessa intromissão do casal. A primeira coisa que pensei deles foi: eles devem ser do tipo que deixam o cachorro, ou os próprios filhos, reinarem sobre a casa e a vida deles. Mas parei de pensar dessa maneira, porque assim como eles, estaria julgando a situação e o mundo deles sem ter qualquer conhecimento.

3 - Depois até me senti culpado, pensando se eu estava realmente machucando o cachorro. Mas logo ignorei esse pensamento porque um cachorro escandaloso como o Marvin (meus vizinhos que o digam) não ficaria quieto se sentisse qualquer dor durante o passeio.

4 - Temos que tomar cuidado com o que lemos ou vemos na internet. Numa dessas, o cara poderia viralizar no Facebook uma foto minha, puxando o Marvin para perto de mim, com algum título que falasse de maus tratos de animais.

5 - Minha tecla "Foda-se" não está devidamente atualizada, porque fiquei me remoendo, a ponto de escrever este post, só por causa da opinião de um estranho idiota.


No fim, depois de divagar muito sobre o assunto, não tenho com o que me preocupar.

Marvin e Barry são saudáveis, brincalhões, carinhosos e adoram os humanos deles. Não há dúvidas disso.

Tentando ser zen novamente, posso até aplaudir o casal por essa preocupação e por terem coragem de falar com alguém sobre uma situação que os preocupou. Eles só escolheram a pessoa errada.

Segunda movimentada. A situação teria sido muito mais legal se o Marvin tivesse o impulso de mijar no carro deles, antes que fôssemos embora. Posso até imaginar uma cena assim.

De qualquer maneira, para eu não ficar engasgado com isso, uma mensagem final:

Prezado senhor do sedan prata e sua filha/esposa/companheira: vão tomar no cu.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Lâmpadas e coxinhas

A rotina diária pode não parecer uma grande luta, mas é difícil sobreviver a ela. Quando você vê, sua vida já está na mesmice, os anos vão passando mais rápido e de repente, vem o clássico arrependimento das decisões que você não tomou e das escolhas que foram feitas.

Rodolfo não tinha se dado conta disso. Reclamava para si mesmo todos os dias por ter que acordar cedo, ajudar sua esposa, colocar os dois filhos pequenos na perua do colégio e preparar o lanche deles. Tudo isso a partir das 5h da manhã.

Reclamar é um vício. Igual ao cigarro. Demanda tempo, energia, traz alívio em curto prazo a alguma angústia, mas é um hábito inútil se a pessoa está atrás de mudanças.

Bem como boa parte das pessoas, Rodolfo esperava alguma coisa mágica ou drástica acontecer para mudar sua vida. Tudo para fugir de sua própria responsabilidade pelo rumo das coisas. Por conta desse comodismo, chegou até a imaginar a morte de sua esposa e filhos. Só para poder reiniciar seu próprio mundo.

Visualizava o choque, o choro, o funeral, o consolo dos parentes e amigos, o período de luto e a recuperação triunfante. "Bom... Se ela me pedisse o divórcio, seria menos dramático, mas seria bem mais caro!" — pensava sabendo que não poderia compartilhar esse tipo de ideia com ninguém.

Nada é esperado quando se trata do destino. Sua família continuou viva e bem. Seu emprego no escritório de importação continuou o mesmo marasmo.

Um dia, em um raro almoço feliz de casual friday, foi arrastado com um grupo de amigos para um sex shop perto do escritório. Tinham tomado cerveja no restaurante e o álcool diluiu um pouco do pudor para facilitar o passeio.

Chegando lá, brincaram e tiraram sarro dos acessórios. A funcionária da loja até abriu sorrisos para a leve bagunça na loja. Rodolfo ficou imaginando suas colegas com as fantasias que elas pegavam dos cabides e experimentavam. Uniformes de colegiais japonesas, biquíni dourado da Princesa Leia e as clássicas roupas de couro sadomasoquistas.

Todos começaram a rir quando Rodolfo pegou o chicote da fantasia de dominatrix e disse: "É o Chirrin-Chirrion do diabo!".

Apontou o chicotinho para uma de suas colegas e falou:

— Biquíni da Princesa Leia, CHIRRIN!

Espanto. Todo o grupo ficou sem palavras. Inclusive a atendente da loja. A colega de Rodolfo imediatamente ficou com as roupas-fetiche da princesa.

Foi surpreendente porque ninguém nunca tinha usado um chicote sadomasoquista dessa maneira, e por um acaso bizarro do destino, era realmente o artefato demoníaco mostrado pela primeira vez numa história do Chapolim Colorado. 

Rodolfo ficou confuso. Questionou se estava bêbado. A leve simpatia alcoolica passou na hora. Depois se sentiu poderoso.

— Todo mundo nessa loja, CHIRRION! — gritou.

E todos sumiram. Não se sabe para onde foram. O espaço da loja ficou vazio. Só sobrou o chão e as paredes.

— Não gostava de ninguém aqui... Tudo Pra Você Importação Ltda. CHIRRION! — e fez o escritório em que trabalhava desaparecer com todos os funcionários que estavam no prédio.

Riu maleficamente. Pensamentos vingativos começaram a surgir. Foi quando teve uma brilhante ideia. Rodolfo fora assaltado duas vezes em sua vida: uma na rua e outra em que entraram em seu bar favorito durante um longo arrastão em Moema. Isso há uns três anos. Ele não sabia se a polícia tinha capturado os bandidos e teve medo de fazer o reconhecimento quando prenderam alguns suspeitos.

— Todos os bandidos que me assaltaram, algemados em cadeiras, CHIRRIN!

E surgiram. Cinco bandidos, amarrados em cadeiras e completamente confusos. Depois de se recuperar do espanto, Rodolfo falou:

— É... Vocês provavelmente não se lembram de mim. Mas eu sei exatamente quem é cada um de vocês. Hmmm... Os dois da esquerda me roubaram um celular quando eu voltava para casa. E vocês invadiram o bar que eu estava...

Os bandidos mantiveram o silêncio. Pareciam bem desorientados. Nenhum respondeu, apenas olhavam em volta para tentar descobrir onde estavam.

Não foi o susto do arrastão, tampouco o prejuízo material. A pior sensação do assalto para Rodolfo foi a impotência. Desde esse dia, ele ficou mais ansioso. Paranoico.

—  Coletes salva-vidas, CHIRRIN! — e todos os bandidos ficaram com um colete salva-vidas.

— Braços, pernas e cordas vocais, CHIRRION! — e todos os bandidos viraram cotocos mudos.

Rodolfo deixou os cinco na loja vazia e foi correndo buscar seu carro: uma Palio Weekend. Alguns minutos depois, conseguiu carregar o que sobrou dos bandidos até o porta-malas de seu carro. Entrou, deu partida, saiu e, com o chicote na mão, gritou:

— Testemunhas, CHIRRION! — Alguns transeuntes desapareceram.

Mais ou menos uma hora e meia depois, Rodolfo chegou com os desesperados bandidos no porto de Santos. Apontou o artefato para a água e disse:

— Barco, CHIRRIN! Testemunhas, CHIRRION!

Carregou cada um dos cotocos para dentro do barco e foi para alto mar.

— O olhar de vocês está impagável, galera. — disse Rodolfo, enquanto dirigia o barco. — Vale cada real de prejuízo que vocês me deram.

Desligou o motor do barco na distância em que não conseguia mais ver o porto. Um por um, Rodolfo jogou os bandidos sem braços, pernas e voz na água. Todos flutuaram devido ao colete salva-vidas.

— Boa sensação de impotência para vocês, pessoal! Até mais! — Ligou o barco e foi embora.

Foi um capricho. Mas Rodolfo era rancoroso demais e teve que fazer isso.

Chegando em terra novamente, passou a fazer seus novos planos com o Chirrin-Chirrion: criar seu atelier, tirar umas férias, viajar com a mulher e os filhos, ouvir mais música, ler mais livros... Opa! Peraí! Precisa de um artefato místico e demoníaco para poder fazer isso?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

São Joaquim

Há tempos que estava intrigado. Se imaginava em uma situação como no filme "O Show de Truman".

Na linha azul do Metrô, reparou que ninguém entrava ou saía do trem quando ele parava na Estação São Joaquim. Tentava identificar se eram sempre as mesmas pessoas que circulavam pela plataforma. Observava atentamente se apareceriam criaturas estranhas nos cantos.

De qualquer forma, não sabia o que procurar. Uma vaca malhada estacionada? Um cachorro-quente alado? Orcs à espreita nas quinas das paredes apenas observando o movimento? Um portal para São Tomé das Letras? A sala de controle do reality show da sua vida? A imaginação ia longe.

Estaria ficando paranoico? Não queria fazer psicoterapia. Achava que psicólogos eram apenas um bando de perdidos ajudando outros desorientados. Tinha esse preconceito. Acabava tendo vários outros por pensar demais.

Não era à toa. Ficava enjoado quando lia em movimento. Também não conseguia jogar games no celular ou acessar o Facebook. Por conta disso, fazia a viagem entre o Jabaquara e o Tucuruvi completamente entediado. Um tempo perdido de sua vida.

Andava meio frustrado. Estava decepcionado com seu novo emprego. Tinha acabado de ser contratado nessa nova empresa. Era muito perto do Metrô. O serviço era o que ele sabia fazer e o salário não era mau. O problema era o chefe: um pé no saco.

— Eu ejaculei na cruz mesmo! — pensou, puto da vida. Era segunda, estava tenso, apressado e o chefe não relevaria os possíveis 20 minutos de atraso no horário de hoje.

Apesar das encheções de saco do seu gestor, era o emprego ideal. Tinha talento e experiência para as atividades. Mesmo assim, queria empreender e ter um negócio próprio, mas faltava-lhe coragem. Fez uma enorme pesquisa de rentabilidade de franquias. Tinha se interessado por uma que vendia relógios de pulso personalizados.

Mas como começar algo novo? O trabalho atual pagava bem suas contas, mas não permitia guardar muito dinheiro. Como largar essa pseudo-estabilidade para entrar em um território totalmente desconhecido? Será que ele ia gostar da vida de empresário?

Eram muitas questões de grandes consequências e mudanças. Até então, normal. Uma decisão dessas não é tomada por impulso. O que realmente estava incomodando era que o sujeito se sentia um grande covarde.

Sentir-se assim fez com que tivesse uma revelação ainda mais incômoda. Ele passou a perceber o quanto era parecido com as pessoas que ele não admirava. 

Criticava uma prima solteirona que tinha vários talentos, mas que não os aproveitava. Ela ficava em depressão em casa, cultivando a hipocondria, neuroses e aproveitando os rendimentos da herança que recebera do pai. Ele a via como uma perdedora. Mas ficar em um emprego que, toda segunda-feira de manhã, o fazia suspirar de desgosto é uma vitória? Não é apenas outro tipo de acomodação?

Detestava o comportamento de um amigo, que nunca assumia as próprias responsabilidades. Esse cara sempre encontrava um culpado para tudo que dava errado na vida. Seguia fielmente a frase de Homer Simpson: "Se alguma coisa é difícil demais, então não vale a pena fazer".

Sem que esse amigo soubesse, deu-lhe o apelido de "Madre Teresa". Tudo porque o sujeito é cego para os próprios defeitos: nunca admitia ter preguiça, inveja, ou até mesmo desejar ou falar mal de alguém. Alcançara a perfeição pela cegueira.

Sentado no banco marrom do metrô, nosso protagonista pensava no quanto seu próprio mundo era perfeito pela cegueira. O que ele estava deixando de enxergar que deixava sua vida assim?

— Próxima estação: São Joaquim. Desembarque pelo lado direito do trem. — disse a voz nos altofalantes.

Pensou: "Foda-se! Já estou atrasado. Vou descer aqui mesmo para ver o que acontece!". E o fez.

Na plataforma, tudo certo. Seguiu até as escadas rolantes. Subiu, passou pelos bloqueios e foi em direção à saída.

De repente, sentiu uma enorme força o puxando progressivamente. Primeiro a ponta dos pés, joelhos, quadril, abdome, tórax e cabeça. Incontrolável. Era o vácuo vindo de um buraco negro.

Seus olhos não acreditaram no que viam: um fundo preto, estrelas, átomos circulando e cometas dourados em alta velocidade. Quando sentiu que o ar estava rarefeito, olhou para a direita e viu um cardume de sete peixes-lontra em uma formação de voo igual a de patos selvagens. Na esquerda, uma chuva de cabeças do Régis Tadeu gritando: "Eu odeio Manowar!" em contraponto de terças.

De repente, tudo apagou. O buraco negro o sugou completamente. Mas claro, pode ser que ele só tenha sido nocauteado ao escorregar em uma poça d'água e batido a nuca na calçada.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Insônias aleatórias

Já passava das 23h. Estava lá, deitado na cama. Carlos chamava essas crises de "insônias aleatórias". Não tinham dia, nem critério e tampouco frequência para aparecer. Nunca chegou a procurar um médico para ver o que era isso. Tinha se acostumado.

Sua esposa já estava no 30º sono. Dormia tranquila ao seu lado. Ele estava feliz com ela. Depois de se entediar com o ritmo das luzes do celular se projetando no teto, passou a prestar atenção nela. Lembrou do dia em que se casaram, do primeiro encontro, início do namoro e das vezes em que saíram para se conhecerem melhor.

E por aí foi. Uma coisa levou a outra. Ao pensar em como tudo deu certo entre ele e sua esposa, passou a recordar todos os encontros desastrosos que passara na vida. Alguns nem foram tão ruins assim, mas teve um em especial que marcou demais.

Lá para o meio de 2006, ele tinha acabado de comprar seu carro. O nome da garota era Sabrina. Uma amiga da ex-namorada de um brother. Tinham se conhecido em uma baladinha qualquer.

Seria a estreia do Corsa como "abatedouro". Carlos se dava bem com Sabrina. Trocavam e-mails quase que diariamente sobre diversos assuntos. Às vezes, apenas com um "Oi, tudo bem?" na parte da manhã, a conversa se estendia pelo resto do expediente. O e-mail corporativo deles era praticamente um instant messenger.

Daí até marcarem de sair juntos, levou algumas semanas. Uma cantora de jazz faria um show no SESC Vila Mariana na ocasião. Carlos então, chamou Sabrina para assistir. Ela aceitou.

Sem GPS no celular e novo na carta de motorista, Carlos fez um estudo prévio para sair de seu trabalho na Lapa e buscar Sabrina no apartamento dela, em Moema. Durante o dia, entrou no Google Maps e falou com colegas que moravam na região. Tudo para não errar o caminho nem se atrasar.

Estava ansioso, mas tomava água para se acalmar. Tinha separado uma camisa para usar no encontro. Deixou um desodorante e um perfume na primeira gaveta de sua mesa. Comprou uma rosa colombiana para dar de presente a Sabrina.

Em paralelo a isso, fez tudo que tinha que fazer no trabalho em um ritmo alucinante. Terminou perto das 18h30, pontualmente no horário que tinha calculado para sair.

Desligou o computador, guardou suas coisas na mochila, pegou as impressões do Google Maps e saiu.

Dali para Moema, optou pelo caminho Marginal Pinheiros-Bandeirantes. Trânsito lento, mas tudo dentro dos cálculos de tempo que tinha estimado.

A única coisa que Carlos não previra era que a quantidade de água que bebeu durante o dia lhe causaria problemas logo naquela hora. Uma fortíssima vontade de mijar veio de repente, sem qualquer indício ou aviso prévio.

E o trânsito parado.

Ele começou a respirar fundo. A saída da Bandeirantes estava perto. Era só não se concentrar na própria bexiga. O carro avançou mais alguns metros. Carlos começou a dançar no banco. Dava pequenos e rápidos pulinhos usando apenas a força da bunda.

Pensou desesperado: "Puta merda! Chegar no encontro mijado é de cair o cu da bunda!". Começou a planejar uma visita rápida a alguma loja de roupas pelo caminho. Só para comprar um novo par de calças jeans.


Mais alguns metros. Finalmente! Entrou à direita e conseguiu andar um pouco mais rápido. Parou no primeiro boteco que encontrou, quase tropeçou no cinto de segurança que enroscou em seu tornozelo enquanto descia do carro e fechou a porta. Nem viu se estava parado em local proibido ou se tinha fechado o carro.

— Posso usar seu banheiro? Por favor! — pediu em tom de súplica para o homem no balcão.

— Opa! — respondeu o barman.

Ufa. Foi uma longa mijada. Alívio imediato. Lavou as mãos, agradeceu ao barman e voltou para o Corsa.

Mais tranquilo, conferiu as impressões do Google Maps e continuou seu caminho em direção à casa de Sabrina.

Chegou. Parou o carro na frente do condomínio e ligou de seu celular para ela. Alguns minutos depois, ela desceu. Carlos a esperou do lado de fora do carro, com a bela rosa colombiana na mão.

Ele a cumprimentou com um beijo no rosto. Sabrina agradeceu:

— Ai! Obrigada! Adorei meu presente! — disse sorrindo e cheirando a rosa.

Entraram no carro, conversaram sobre como o dia tinha sido e foram em direção ao SESC. Ou pelo menos, era o que Carlos achava.

Ele cometeu um erro básico. Na pressa, imprimiu as orientações para o local do show com origem em seu trabalho na Lapa, e não no endereço de Sabrina. Como não sabia andar por aquela região, acabou se perdendo. E ficou nervoso.

Sabrina ainda olhava para a rosa e continuava a conversa, mas Carlos não a ouvia. Ele quase suava frio tentando reconhecer alguma rua. Ele seguia em frente como se soubesse para onde estava indo.

Até que não teve jeito. Carlos precisou perguntar:

— Hã, Sabrina? Você sabe voltar para a 23 daqui? — a 23 de maio seria um bom referencial para Carlos se orientar.

— Humm... Deixa eu ver... Entra na próxima esquerda... Não, a segunda à esquerda...

— A primeira ou a segunda? — perguntou Carlos, ainda disfarçando o nervosismo.

— A segunda!

Passaram pela primeira rua, na segunda, perceberam que era contramão.

— Xii... Então é a terceira ou a quarta... — disse Sabrina, em tom de dúvida.

— Entro agora na terceira?

— É... Não sei. Acho que a 23 está para a esquerda.

— ENTRO NESSA OU NÃO?!

Com o aparente descontrole de Carlos, o silêncio imperou no carro por alguns segundos constrangedores, que pareciam uma eternidade. Até que Sabrina falou:

— Entra na próxima e vamos descobrir. Eu sou só uma menina do interior. Também não sei andar por aqui direito.

Hoje, Carlos tem mais claro na mente que, naquele preciso momento, suas chances de sucesso com Sabrina caíram para -50. Ele nem se lembra como conseguiram chegar ao SESC, assistir ao show e ainda jantar.

Sua memória pode ter exagerado na intensidade do descontrole. Mas tudo bem. O sono finalmente chegou. Carlos deu uma risada silenciosa, bocejou e virou para o lado de sua esposa. Dormiu até o despertador tocar, umas horas depois.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

De Lorean Creative Solutions Ltda.

Lá estava Gustavo. Sentado de frente a uma fogueira assando um besouro que tinha encontrado. Era o jantar mais farto desde a grande tragédia, há três semanas.

Estava faminto. Pensar que fazia dois meses que tinha sido chamado para ser estagiário da agência De Lorean Creative Solutions Ltda. Depois de um longo processo seletivo, fora escolhido para a área de atendimento.

Antes que todos pudessem perceber o avanço tecnológico, a viagem no tempo já era possível. Dos estudos finais até a utilização banal foi uma evolução muito rápida. As agências de publicidade foram as primeiras a adotar as máquinas do tempo como ferramenta de trabalho.

Problemas de prazo, entregas, pressão. Era uma solução perfeita. A expressão "esse trabalho é para ontem" passou a fazer sentido.

A De Lorean foi pioneira. Os gerentes de projeto amaram a ideia. Os clientes, mais ainda.

As duplas criativas trabalhavam da seguinte maneira: o job complicado chegava com um prazo apertado. O diretor de arte e o redator definiam o tempo para a execução do trabalho. Podiam demorar o quanto precisassem para uma entrega de qualidade.

Ao terminar o trabalho, mesmo que muito atrasado, os funcionários do atendimento faziam a viagem no tempo para apresentar, aprovar e veicular as peças na data que tinha sido estipulada.

O único cuidado especial que devia ser tomado era para não desorganizar a agenda dos gerentes do projeto. Mais uma função que deveria ser incorporada nas planilhas de cronograma.

Alguns simplesmente incluíram a coluna "EVT" (Entrega com Viagem no Tempo) ou "EMT" (Entrega com Máquina no Tempo). Tudo era uma questão de planejamento.

Quando passou no processo seletivo, o RH e os gestores de área definiram que o melhor lugar para Gustavo era no departamento de atendimento, auxiliando na administração das contas de varejo.

Gustavo estava feliz. Era uma grande oportunidade. Trabalharia em uma das maiores agências do país. Uma empresa que tinha crescido muito nos últimos anos. A De Lorean duplicou o faturamento com a conquista dos primeiros clientes que buscavam a solução da máquina do tempo.

A viagem temporal, principalmente no período de implantação, era um típico serviço para estagiários. Era necessário vestir uma roupa especial protetora. O material era amianto porque, durante as viagens, havia o risco de combustão espontânea.

Funcionava assim. Havia uma estrutura de metal cilíndrica, de 2 m de altura por 1,60 m de diâmetro.

A cabine tinha um painel eletrônico, com um teclado numérico onde eram digitados a data-destino e o horário. Devido à perda de dois estagiários por erros de digitação, foi estipulado como medida de segurança que a data limite para viagem seria 10/6/2010, dia em que a ferramenta fora implantada na agência. Assim, quem viajasse teria um meio de retornar ao seu tempo de origem.

Em resumo, assim que entrava na cabine, o viajante do tempo era submetido a micro-vibrações muito rápidas. Vibrava tanto que acontecia uma desestabilização molecular, assim, o grupo de moléculas era deslocado no sentido contrário de rotação da Terra, até a data desejada. A combustão nas primeiras viagens vinha do atrito com o ar no início da micro-vibração.

Enfim. O problema estava resolvido. Gustavo já estava se acostumando com as viagens. No começo, sentia um pouco de náuseas. Nada demais. Quando chegava no "tempo de entrega", era necessário apenas dar a seu chefe o pendrive com as peças e depois, voltar à máquina do tempo.

Tudo muito simples.

As coisas começaram a mudar quando a De Lorean venceu a concorrência de sua primeira conta imobiliária: Pássaros de Goiânia Construção e Vendas. O cliente, atraído pela maravilha da viagem no tempo, optou sem pestanejar pela agência.

Com um gordo fee, o maior da casa, a conta tinha muitos poderes e privilégios sobre os funcionários da De Lorean. Por causa disso, todos foram muito imprudentes na utilização das EVT's.

Um e-mail marketing. Algo muito simples que teve consequências desastrosas para o planeta.

A peça, que informaria o mailing de um evento em conjunto com a Caixa Econômica, conteria uma lista de empreendimentos que estariam em promoção e ótimas condições de financiamento. Contando com a EVT, o prazo já estava apertado. O trabalho entrou na agência na quinta-feira. O evento seria no sábado.

Na própria quinta, depois das 19h, a dupla criativa finalizou o trabalho.

Primeira alteração na sexta: a medida de um dos residenciais, o Jardim de Lírios com Orvalho, estava errada. Não eram 82 metros quadrados, e sim 70. Gustavo voltou para quinta-feira às 19h para refazer a entrega.

Segunda alteração na segunda-feira seguinte: o cliente não gostou de uma das cores no layout. Não estava vendedor. Era necessário passar mais alegria e esperança em um evento que oferecia uma oportunidade singular de compra de imóveis. Lá foi Gustavo de novo para a quinta-feira às 19h com o pendrive de alteração.

Terceira mudança, na segunda ainda na parte da tarde: o fundo do logo parecia estar prata, quando, na verdade, deveria ser cinza. Isso ia contra as especificações do guide. "Vai lá, Gus!".

Quarta alteração: trocar a palavra "imóvel" para "apartamento" em todo o e-mail. O enjoo que Gustavo sentia nas primeiras viagens até voltou a atacar seu estômago.

Quase uma semana depois da primeira entrega do job, veio o último pedido de alteração. E foi realmente o último. Pena que não deu tempo de aprender com esse erro: alterações e viagens no tempo formavam uma destrutiva combinação.

Enquanto Gustavo viajava, no formato de um agrupamento de moléculas soltas a grande velocidade, acabou se encontrando com dois outros Gustavos viajantes de outras alterações.

Houve um choque molecular e atômico, similar ao experimento no Grande Colisor de Hádrons, que desestabilizou os nêutrons e gerou a maior explosão atômica já documentada. O cogumelo de fumaça poderia ser visto da Lua.

A explosão varreu a vida na superfície da Terra. Sobraram apenas baratas, alguns insetos e um Gustavo, que surgiu na cabine da máquina do tempo após a estabilização de tudo.

Ele encontrou um mundo pós-apocalíptico típico. Deserto, sem luz e, até onde se sabia, sem zumbis.

No fim, só lhe restava torcer que a Emma Watson também estivesse viva para ajudar a repovoar o mundo.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Justiceiro Cotidiano

Edu sempre sonhou ser um super-herói.

Desde os 15 anos até hoje, com 30, ele aleatoriamente testa se seus super poderes vão se manifestar.

Pode ser na hora do almoço, no ponto de ônibus, em uma caminhada qualquer ou até mesmo nos corredores do escritório. Ele olha para os lados, escolhe um alvo e estica seu braço direito em direção a ele. Às vezes com o punho fechado, outras com a mão aberta.

E fica lá alguns segundos esperando o disparo de algum raio incandescente, um kamehameha, hadouken ou mesmo uma descarga da eletricidade estática.

Em outras oportunidades, Edu tenta mover objetos de metal com seus supostos poderes magnéticos. Qualquer habilidade mutante serviria.

Quando está parado em um engarrafamento na Berrini com seu Fiesta, logo se imagina em um voo vertical, que rompe o teto do carro. E abandona todo aquele trânsito para rasgar o céu em alta velocidade até sua casa. Só volta para a realidade quando lembra que, se tivesse tais poderes, não precisaria comprar um carro e pagar em 72 prestações.

Essa imaginação fértil, paixão por quadrinhos e animes, não era muito proveitosa em sua adolescência. Hoje em dia, qualquer um que o analisasse diria que ele sofria bullying e que estaria muito perto de entrar em alguma escola armado de metralhadoras, com a cueca por fora da calça, atirando em todos e gritando: "por Crom, Ishtar e Mithra!".

Como a maioria dos nerds nascidos nos anos 80, Edu cresceu bem. Apesar de seus surtos de imaginação a la "Mundo de Bobby", ele amadureceu, tem um emprego, namorada e amigos.

Bom. De perto, ninguém é normal.

Edu encontrou um jeito de se tornar super herói. Mesmo com suas limitações.

Tornou-se o poderoso Justiceiro Cotidiano. Nada de sair por aí mascarado. Tampouco, pular de prédio em prédio — após os 25, estava bem menos ágil com sua barriga de cerveja. Não tinha equipamentos, cinto de utilidades, nem mesmo uma central de operações secreta.

Simplesmente fazia seus movimentos para resolver qualquer injustiça que encontrasse no caminho.

Uma vez, lá pelas 8h da manhã, em um de seus engarrafamentos diários da Berrini, um carro da autoescola local começou a atrapalhar todo o fluxo da faixa da direita. A menina, que estava em aula, deixou o carro morrer. Com as bochechas vermelhas, ligava o carro, mas quando ia sair em primeira marcha, deixava o Golzinho morrer de novo.

O instrutor respirava fundo, impaciente. O carro de trás começou a buzinar. Tudo isso só aumentou o aparente nervosismo da garota. Que falhou mais três vezes ao dar partida no veículo.

Edu não pensou duas vezes. Parou o Fiesta ao lado do carro da autoescola, engatou a primeira marcha e "assassinou" seu carro. Deixou morrer de propósito. Recebeu suas buzinadas, mas as ignorou. Olhou para a garota, sorriu e deu partida novamente. Ela retribuiu o sorriso, se acalmou e conseguiu sair pouco depois.

Esse dia fora movimentado. Alguns metros à frente, um passageiro do ônibus jogou um copo vazio de água mineral pela janela. O copo tinha peso para ser arremessado porque também continha lenços de papel amassados e cheios de ranho, uns oito ou nove, todos juntinhos no recipiente.

Os reflexos de Edu para a nova vida de herói estavam aguçados. Nem sei como ele conseguiu ser tão rápido. O fabuloso Justiceiro Cotidiano subiu a guia rebaixada, parou o Fiesta na calçada do posto de gasolina, ligou o pisca-alerta, desceu do carro, pegou o copo da calçada e o atirou de volta no ônibus com incrível precisão.

Gritou:

— PORCO! — e voltou correndo para o Fiesta.

Mesmo com o trânsito lento, foi uma grande façanha. Edu acertou a bochecha direita de seu alvo e retomou o caminho para o escritório, sem atrasos.

Durante o expediente, tudo correu normalmente. Mesmo para Edu. Ele terminou todas suas atividades no horário. Era sexta e tinha um happy hour marcado. Deixaria o Fiesta no estacionamento da empresa e iria de trem até a Vila Olímpia. Ia só tomar umas cervejas e esperar a bebedeira passar antes de pegar novamente seu carro.

As estações de trem, na hora do rush, têm várias potenciais injustiças. O Justiceiro Cotidiano não poderia deixar nenhuma passar batida.

Depois de passar pelos bloqueios, Edu viu o elevador para deficientes com uma enorme fila. No meio dela, um idoso aguardava sua vez em meio a várias outras pessoas aparentemente preguiçosas.

Edu, entrou na fila, pegou no braço do velhinho e o conduziu até a porta do elevador. Após parar com o homem lá, virou para as outras pessoas e falou:

— Gente, preguiça não é necessidade especial. Vamos todos fazer exercício, descer as escadas. Abaixo o sedentarismo! Vamos lá! Ilari lari ê!

Acho que carisma era um dos super poderes de Edu. As pessoas da fila imediatamente saíram da frente do elevador e se dirigiram pelo caminho comum até a plataforma. Uma parte sorrindo, outra parte, constrangida. Mas foram.

Empolgado, o Justiceiro Cotidiano continuou com suas imediatas missões. Na escada rolante, tocou no ombro de dois usuários que estavam parados do lado esquerdo.

— Senhor, fique na direita e deixe os apressados descerem por aqui.

— Moça, com licença! Fica na direita? Obrigado!

E continuou feliz e satisfeito com sua carreira de super-herói. Começou a viajar: se imaginou comprando uma passagem para o RS só para dar uma surra na mulher que incentivava o filho a bater no filhote de poodle. Ele levaria um Mastim Napolitano apenas para fazer terror psicológico, enquanto daria tapas de costas de mão na cara daquela escrota. Seria um upgrade na carreira de super-herói.

O devaneio não durou muito tempo. Logo, viu um homem segurando a porta do vagão para que seus amigos, apressados e atrasados na escada, pudessem entrar no mesmo trem. O rapaz estava com a bunda empinada para fora. Provavelmente, chegou correndo e conseguiu segurar a porta com a mão direita.

Edu, que também corria para entrar no mesmo trem, achou injusto com os passageiros que estavam lá dentro. Então, chegou no cara que estava na porta, agarrou-o pela camiseta e o puxou de volta para a estação pelo cinto, em um tranco só.

Aplausos de dentro do trem.

Edu sorriu, deixou o trem partir e acenou para os usuários. Mas a felicidade de mais uma missão cumprida durou pouco.

O cara que segurava a porta ficou emputecido com a cena e deu um cruzado de direita no queixo do Justiceiro Cotidiano.

Foi a última missão do nosso herói. Hoje, ele se contenta em brincar com portas automáticas de shopping. Edu finge que está usando a telecinese para abri-las e fechá-las.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Pressão

Pressa e pressão. Uma combinação que pode gerar consequências, digamos, chamativas.

O domingo tinha sido divertido. A namorada de um dos amigos de Ricardo fez uma festa de aniversário. Todos os oito amigos se reuniram em um boteco que servia comida mineira.

Cerveja, torresmo e porções de feijão tropeiro. Os amigos se esbaldaram e elogiaram o local.

Como o evento seria no domingo, a turma optou por marcar em um horário pouco mais cedo que o tradicional happy hour de sexta. Encontraram-se no bar logo após a rodada do futebol, perto das 18h.

A conversa sempre rende com esse grupo e a coisa foi terminar tarde do mesmo jeito. Lá pela 1h, Ricardo saiu do bar e foi para casa. Chegou bêbado em seu apartamento às 2h e caiu direto na cama. Chegou a quicar no colchão e cair no vão entre a cama e a parede. Derrubou o abajur, mas sem quebrar. Tudo sob controle. Ninguém tinha acordado.

Ricardo tinha que levantar cedo na segunda-feira. Dormir bêbado costuma ser bem relaxante, mas no dia seguinte, parece que você foi atropelado por um Boeing. É ainda mais torturante se você precisa levantar mais cedo que o usual, ao som do alarme escandaloso do celular.

Ressaca. Sem tempo para banho. Ricardo foi enrolando com o botão soneca. Continuou assim de cinco em cinco minutos até que não teve jeito. A última olhada que deu no display do smartphone serviu para dar uma carga de adrenalina que o ajudou a despertar de vez:

— Puta merda! — Gritou e respirou fundo. Estava atrasado.

Vestiu as primeiras roupas que viu disponíveis e saiu. Sem tomar café. Sem ir ao banheiro. Sem dar tchau para ninguém.

E se dirigiu ao ponto de ônibus. Fazia frio. No meio do caminho, sentiu uma pequenina pontada na barriga.

— Cacete... Não acredito que vou precisar cagar agora... — pensou, mas continuou seu caminho.

ROOOOOONC!

Sua barriga roncou. Uma grande e sonora cólica intestinal. Ricardo ficou até preocupado se as outras pessoas do ponto de ônibus ouviram. Havia muito barulho de carros e vendedores ambulantes, mas só para garantir, ele disfarçou. Passou a mão na altura do estômago e comentou com uma pessoa ao seu lado: "Nossa! Que fome...".

Completamente desinteressada no assunto, a pessoa só virou o rosto para Ricardo, deu um sorriso amarelo e voltou a olhar para a rua.

Ainda dava para aguentar a dor. Até que estava levinha. Era só se distrair com outras coisas. "Olha só! Aquele povo do supermercado ainda não se ligou que agora, a rua é mão única. Entrou no sentido proibido. Ah! Agora volta pro sentido certo, tonto! Hehehe! Mais um! Outro. Nossa... Essa ficou até vermelha de sem-graça."

Isso o distraiu por mais algum tempo: "não, cachorrinho! não atravessa agora... Isso. Volta para a calçada. Ufa... Agora fica aí... Vixe. Olha o tamanho daquela poça. Mas de onde ela veio? Não choveu. É só uma poça no meio da calçada seca. A rua está seca."

Enfim, o ônibus chegou. Cheio. Ricardo já devia ter previsto. Quando demora assim, não é um bom sinal. Normalmente, quando o busão vem cheio, ele deixa passar e pega outro. Mas estava atrasado demais e resolveu encarar a viagem.

Subiu, seguido de boa parte das pessoas do ponto. Chegou a poucos centímetros da catraca. Não dava para ir mais. Tudo bem, estava tão lotado que não conseguiria tirar o bilhete-único do bolso.

O corredor do ônibus já estava parecendo o útero da namorada do Shaquille O' Neal carregando os octogêmeos dele. E as pessoas continuavam a entrar. Alguns passageiros estavam grudados na porta central do veículo. Testas e bochechas oleosas eram esfregadas no vidro. As impressões faciais se misturavam formando um grande rosto disforme com vários olhos e bocas.

Será que tentavam bater algum recorde? O ônibus continuava parado no ponto e alguns atrasados ainda faziam seus esforços para entrar, mas a essa altura, seria impossível.

O ônibus partiu com as portas abertas. Não havia problemas com freadas, buracos ou aceleradas bruscas porque simplesmente não existia espaço para os passageiros caírem. Todos apoiados uns nos outros da maneira mais segura que poderia existir.

A agonia de Ricardo continuava. Os minutos pareciam horas enquanto sentia aquela dor de barriga que latejava. Ele começou a suar. Nem é possível dizer que suava frio porque o ônibus estava abafado demais. Todas as janelas fechadas.

Ele engolia seco. Sua bunda estava tão contraída que os músculos poderiam entrar em fadiga a qualquer momento. Ricardo olhava para o teto do ônibus e lia a mensagem da Vivo diversas vezes em voz baixa:

— Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa. Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa. Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa... Eu... Preciso... Peidar...

Além da bunda, o rosto de Ricardo também se contraiu. Fechou os olhos com tanta força que começou a ver pequenas estrelas. Tentou se curvar, mas seu queixo bateu no ombro de uma senhora que estava em sua frente.

— D... Desculpe... — falou.

Com seus 1,87 m de altura, Ricardo apoiava sua mão direita no teto do ônibus. Não tinha muita escolha pois não dava para abaixar o braço devido à lotação. O máximo que conseguiu foi dobrar o cotovelo e colocar as costas da mão na testa.

Começou a sentir calafrios. Não dava mais para aguentar. Nos pensamentos, já cogitava a ideia:

— Se eu peidar agora, ninguém vai sentir. Não vai dar para desconfiar de ninguém. Tem muita gente.  O problema é que a pessoa atrás de mim vai sentir um sopro de calor concentrado... O que eu faço? O que eu faço? Não dá mais para aguentar!

Virou o pescoço para ver quem estava perto de suas costas. Percebeu que a pessoa estava de mochila. O calor do peido se dissiparia antes de entrar em qualquer contato com ela.

— É isso. Não dá mais para aguentar. Vou peidar. — pensou e decidiu.

Respirou fundo e liberou a pressão.

Pena que a sensação de alívio foi quase inexistente de tão rápida.

De tão lotado, a pequena pressão gerada pelo peido de Ricardo foi suficiente para explodir o ônibus.

A carroceria se rompeu. Os passageiros foram arremessados em diferentes direções da Faria Lima. Uma senhora ficou pendurada em um galho de árvore. O cobrador e o motoristas ficaram presos na carcaça do ônibus por causa do cinto de segurança.

Na imprensa, o assunto repercutiu durante uma semana. O que teria causado tamanha explosão?

Especialistas criaram uma teoria que passou em todos os jornais da TV, com simulações e ilustrações 3D. Em geral, as narrações dos repórteres diziam:

— Em temperaturas mais baixas, boa parcela da população utiliza roupas de lã. Por uma infeliz coincidência, a grande maioria dos passageiros estava com blusas desse material. A lotação excedida do ônibus teria feito com que as pessoas ficassem mais próximas e, por consequência, com que se tocassem e as blusas criassem atrito. O atrito gerou eletricidade estática. A eletricidade estática reagiu com a polaridade da carroceria, do tanque do ônibus e provavelmente com a tubulação de gás da rua. Tudo isso gerou uma faísca que provocou a explosão.

Essa foi a teoria aceita.

Ricardo sabia da verdade, mas ficou quieto. Ele sobreviveu à explosão por estar no epicentro. E a vida continua.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Lei da atração?

Pouco depois do almoço, lá para umas 14h, Haroldo caminhava calmamente pela rua até a empresa onde trabalhava. Ele e seu colega conversavam. Era quarta-feira, dia de feijoada. Ambos estavam se sentindo meio cheios. Já previam que não iam trabalhar direito na parte da tarde.

Durante o caminho de volta, havia uma lotérica. Para dar uma enrolada maior até o fim da hora do almoço, resolveram fazer um jogo da Mega-Sena. Maior prêmio da história: 300 milhões de reais.

Marcaram seus números, escreveram o nome e CPF no comprovante e voltaram para o escritório.

"O que você faria se ganhasse na loteria" é o melhor assunto para combater silêncios constrangedores em situações sociais. Por exemplo em bares, restaurantes e/ou festas em que as pessoas ainda não estão bêbadas o suficiente para o assunto fluir melhor. É um tema coringa, assim como "sexo com celebridades", "desventuras com telemarketing" e "histórias de bêbado". Todo mundo já pensou ou viveu algo nesse contexto que vale a pena ser contado.

Haroldo e seu colega sentaram em suas mesas, com planos e sonhos na cabeça. — Imagina ganhar sozinho? — pensavam.

Alguns visualizam o próprio pedido de demissão. Cinematográfico. Se não vai com a cara do chefe, fica mais espalhafatoso ainda. Ir na sala dele, gritar a plenos pulmões "CHUUUUUPA!", tirar a calça esfregar a bunda na mesa de vidro "NHEC! NHEC! NHEC!", deixar um montinho de cocô embaixo do mouse da pessoa. As possibilidades são infinitas.

Não era o caso de Haroldo. Em seus planos, apenas a vontade de gastar tudo e morrer feliz após fazer as atividades que gostaria. Não queria ser rico, aplicar o dinheiro, tampouco ter uma aposentadoria. Enquanto alguns planejam separar um percentual do prêmio para "torrar", Haroldo simplesmente "torraria" tudo. Um pouco em chocolates, outro tanto em viagens, experimentaria todos os tipos de comida e cervejas.

Mas a vida continua. Ambos dobraram o bilhete e o deixaram dentro de suas carteiras.

É impossível determinar a razão, mas na vida de Haroldo, nada que ele esperava acontecia. Às vezes, ocorria até o contrário. Ele até dizia que tinha poderes climáticos. Quando separava um casaco, fazia calor. Quando lavava o carro, chovia.

Em qualquer outra situação, esse fenômeno também aparecia. Sempre que ficava preocupado com o trânsito e atrasos, o tráfego fluía como um bloco de manteiga num toboágua. E quando ficava tranquilo em relação a algum relatório que fazia no trabalho, dava merda.

Haroldo começou a acreditar nesses poderes de contrariar probabilidades quando foi conferir os números da Mega-Sena. E não é que o filho da puta tinha ganhado? Sozinho.

A verdade é que ninguém sabe como reagiria à notícia. Tampouco na hora em que o dinheiro estivesse na conta. Após algum tempo de choque, finalmente Haroldo resolveu agir.

— TORRAR! — berrou ao ver o resultado do sorteio.

E foi embora. Nem se deu ao trabalho de pedir demissão no trabalho. Simplesmente sumiu.

Retirou o prêmio, mas não sabia onde guardar o dinheiro. Por isso, abriu uma poupança e fez o grande depósito. A gerente do banco quase teve orgasmos múltiplos na mesa.

Depois, foi até a Kopenhagen e comprou um ovo de páscoa de 10 kg. O da vitrine mesmo. Sempre teve curiosidade para comer aquilo. Em casa, devorou aproximadamente 400 g, embalou e guardou no armário. Chega de chocolate.

E agora? O que fazer? Passou a ficar ansioso.

Fez uma rápida pesquisa no Google, descobriu um pet shop onde poderia comprar um beija-flor, separou uns cinco mil reais em dinheiro e foi até o metrô.

Após passar pelos bloqueios, dirigiu-se até porta de um dos vagões e deu notas de 100 reais para que os passageiros não entrassem nesse que tinha escolhido. Os usuários, sem entender muito, foram para outras partes do trem.

Haroldo entrou e fez mais uma manutenção para que ninguém adentrasse o vagão. Assim que as portas se fecharam e o trem começou a andar, Haroldo soltou o pássaro. Finalmente poderia tirar a dúvida se um beija-flor, que consegue se manter imóvel no ar durante o voo, sofreria com a inércia do trem. Era algo que se perguntava todos os dias.

Contrariando suas expectativas, o pássaro voou um pouco e logo pousou em um banco. É. Dinheiro não serviria para persuadir a ave. Logo ao parar na próxima estação, desistiu da experiência e levou o beija-flor consigo para casa.

— Você vai se chamar Agenor! — disse para o novo amigo.

Haroldo dedicou o resto do dia para satisfazer mais de suas curiosidades. Depois de montar o cantinho do Agenor em casa, foi até a Avenida 23 de Maio para realizar um sonho de infância: descer as quatro faixas do Monumento das Ondas de Tomie Ohtake de bicicleta.

Foi mais sem graça do que imaginava. Nem precisou subornar algum guarda. Tinha até reservado dinheiro para isso.

Dias depois, contratou uma agência de eventos. Resolveu organizar um festival: Rock in Harold. Alugou o Vila Country e chamou o Gustavo Lima, Restart, Sandy e Luan Santana.. Acertou os cachês e cobrou ingressos do público.

A casa lotou. Durante o show do Gustavo Lima, Haroldo ficou no camarote com uma potente caneta laser. Entre uma música e outra, apontava com o laser no rosto e olhos do cantor, que se atrapalhou, mas achou que fazia parte dos holofotes.

Na apresentação do Restart, Haroldo usou um mini-canhão de ar para disparar fragmentos de papel higiênico molhado nos adolescentes. Em poucas músicas do set, o baixo do Pe Lanza ficou cheio de bolinhas grudadas.

Quando a Sandy começou a cantar, Haroldo foi até a mesa de som e experimentou uma série de efeitos aleatórios na voz dela. Ecos, voz de robô, sintetizadores de pato. Depois, cortou o volume do microfone e substituiu o áudio com sua imitação do Sílvio Santos, interpretando as mesmas músicas que a banda apresentava.

— Eu faço o que eu quero nessa porra! — gritou.

Com tanto desrespeito, Luan Santana pensou em dispensar o cachê. Mas suas fãs gritavam tanto, que voltou atrás. No momento em que subiu no palco e abriu a boca para cumprimentar o público, Haroldo desligou a chave geral do Vila Country e derreteu os controles com um maçarico, aos risos.

Confusão. Sinceramente, não sei como Haroldo escapou dessa história toda. A polêmica saiu na Folha, Estadão, UOL, Terra e etc. O burburinho durou um tempo e, como várias outras notícias, foi esquecido.

Haroldo percebeu que estava cometendo loucuras cada vez maiores com o prêmio. E o dinheiro ainda estava rendendo na poupança, o que aumentou sua fortuna.

Foi então que teve uma ideia brilhante. Virou para Agenor e falou:

— Vou gastar tudo de uma vez!

— Piu? — respondeu Agenor.

Haroldo resgatou todo o dinheiro de sua poupança e sacou seu novo e astronômico limite de cheque especial do banco.

Comprou uma rede de televisão, cinco Ferraris, dois Porsches, um Monster Truck e o Canindé.

Cumprindo um cronograma elaborado, imprimiu, foi ao centro de São Paulo e distribuiu 20 mil ingressos das arquibancadas.

Gastou todo o dinheiro em um excêntrico programa de seu novo canal.

No primeiro dia, a Harold TV transmitiu 12 horas ininterruptas de um Monster Truck destruindo carros de luxo no gramado do estádio. O próprio Haroldo conduzia o gigantesco veículo com Agenor em seu ombro.

Quando destruiu a última 612 Scaglietti, Haroldo suspirou aliviado.

— Finalmente, estou livre do dinheiro, Agenor!

— Piu?

E foi um grande engano. A rede e o programa bateram recordes mundiais de audiência e acabaram comprados pela ABC.

Hoje, com a antiga fortuna triplicada, Haroldo e Agenor vivem em uma ilha particular no sul do Pacífico.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Catota

Se olhar com atenção, dá para perceber uma série de tiques e manias das pessoas à sua volta. Alguns são bem discretos, outros exagerados.

Lindolfo tinha muito medo que seu nariz estivesse sujo. Odiava pensar que alguma sujeirinha seca ou fragmentos de ranho solificados ficassem pendurados e à vista em suas narinas.

Claro que sua cabeça sempre exagerava nas proporções do fato. Em seu devaneio, algo verde e disforme estaria preso nos pelos do nariz como um macaco bêbado de frutas fermentadas enroscado em cipós. Algo gigantesco balançando para lá e para cá prestes a cair em sua camiseta.

Em função dessa neurose, Lindolfo constantemente conferia se seu nariz estava sujo. De tempos em tempos, levantava a mão direita e passava o dedo indicador nas bordas das narinas. Tentava ser discreto. Não queria que as pessoas pensassem que estava enfiando o dedo lá dentro. Isso seria falta de educação. E realmente era só uma conferência superficial.

Se alguém reparasse, ele fingia que estava pensativo. Mantinha a mão tampando a região da boca e olhava para o horizonte vazio. Às vezes, até franzia a testa. Levantava uma das sobrancelhas. Só para dar a entender que estava imerso em profundos questionamentos. De repente, para voltar à realidade, Lindolfo simulava uma rápida e elegante coçadinha na ponta do nariz.

Nosso preocupado amigo estava cultivando um bigode. Resolveu inovar no visual. O problema é que quando os pelos começaram a ficar mais longos e desajeitados, faziam um pouco de cócegas e causavam coceira. Resultado? Amplificou sua sensação de nariz sujo, fazendo com que Lindolfo conferisse a limpeza ainda mais vezes durante o dia.

Andava sempre com um pacote de lenços no bolso. Não queria passar de novo pela situação mais constrangedora que viveu na faculdade. Era inverno e conversava com alguns amigos no intervalo de duas aulas. Como estava um pouco resfriado, precisou espirrar. Foi incontrolável. Chegou a por a mão no rosto, mas não adiantou. O muco verde-esbranquiçado escorria no meio de seus dedos.

Ficou tão desesperado que saiu correndo da sala de aula, largando a conversa com seus amigos. Que vergonha! A minazinha que ocasionalmente xavecava também estava no grupo.

Obviamente, seus colegas não ligaram. Continuaram o assunto normalmente. O que realmente chamou a atenção foi a velocidade de Lindolfo, que se levantou e correu para o banheiro de maneira súbita.

— Lindolfo, espirro é normal! Você está resfriado. Eu pensei que você ia correr, pegar um ônibus e fugir para casa de tão rápido que você saiu! — disse a minazinha.

Os anos passaram. Perdeu o contato com a garota. O pacote de Kleenex foi incorporado ao bolso, e de lá, nunca mais saiu. Mesmo no verão, ou quando a rinite atacava, ele era bem aproveitado e renovado de tempos em tempos.

Tudo seguia na normalidade. Essa nóia já fazia parte do dia a dia. Deixou de incomodar e não atrapalhava suas atividades. Era só ter qualquer sensação no nariz, de um vento a um toque dos bigodes, que rapidamente Lindolfo conferia a limpeza.

Ficar reparando tão incansavelmente no próprio nariz fez com que Lindolfo também fosse muito atento, observador e detalhista nas narinas dos outros.

Percebia a metros de distância se alguém estava com o nariz escorrendo ou com alguma melequinha pendurada. Isso não se aplicava apenas ao universo nasal. Encontrava nas pessoas remelas nos olhos durante a manhã, fragmentos de rúcula, alface ou feijão nos dentes depois do almoço e ocasionalmente micro farelos de pão nas barbas e camisetas.

Flocos de caspa eram como holofotes, show de laser e fogos de artifício fosforescentes saindo diretamente do couro cabeludo de seus colegas de trabalho.

Essa percepção super aguçada a secreções discrepantes no rosto dos outros também não incomodava. Até o dia em que fez uma reunião com o Vice Presidente Regional da empresa em que trabalhava.

Logo que a reunião começou, do outro lado da enorme mesa da sala, Lindolfo conseguiu enxergar uma bolinha branca de baba que ficava próxima ao canto da boca do VP. No lábio inferior. Era arredondada e tinha poucas micro bolhinhas de espuma.

Lindolfo desfocou. Não prestava mais atenção a qualquer assunto tratado naquele momento. A bolinha de baba estacionada parecia um iglu. Passou a imaginar esquimós microscópicos vivendo ali. Pequenas pessoas caçando restos de comida que sobravam abaixo da língua ou nos dentes do executivo.

A cada vez que o VP fechava a boca enquanto falava sobre algum tópico, formava-se um fio de cuspe que, na visão de Lindolfo, subia, descolava do lábio superior e descia em câmera lenta até voltar à forma original.

Começou a ficar tenso com aquela imagem. O vice presidente passava a língua na boca, tirava a gota de cuspe, mas sempre em seguida, ela voltava. Às vezes maior. Às vezes menor. Mas sempre voltava.

Lindolfo queria levantar, sacar uma folha quádrupla de lenço e limpar aquilo. Suou frio para resistir a essa vontade. Foi difícil. Desviava o olhar, desenhava um lago com montanhas em seu caderno de anotações, mas toda vez que parava, a primeira coisa que lhe chamava o olhar era a meia esfera de saliva na boca do cara.

Os minutos se passaram e Lindolfo continuou focado no movimento do igluzinho de cuspe. Ele finalmente aceitou que não prestaria mais atenção na reunião, até que ouviu VP falar:

— Concorda, Sr. Lindolfo?

— Er... É... Ok! Concordo!

Todos aplaudiram. Lindolfo acabara de ser transferido para a filial da empresa em Roraima.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Desconvicto

Dizem que o Facebook é igual geladeira. Você sabe que não tem nada, mas fica olhando de cinco em cinco minutos.

Para Zé Paulo era ainda pior. É como se abrisse a geladeira e encontrasse vários potes de requeijão cheios de bolor.

O cara levava o Facebook a sério demais.

Há alguns meses, Zé Paulo estava desempregado. Isso fez com que ele ficasse mais tempo conectado em seu computador. Procurando emprego, acessando o Globo Bizarro e reativando contatos.

Na rotina de seu desemprego, também passava algumas horas sem inspiração olhando para uma postagem em branco de seu blog. Não tinha assunto para escrever. Só naquele ano, tinha postado quatro manuais de boas maneiras nas redes sociais.

Faltava identidade. Queria se diferenciar dos outros, mas não sabia como.

Seu blog até tinha bons acessos, mas não tanto quanto gostaria. Isso o frustrava demais. Zé Paulo queria ditar tendências. Queria dizer para o mundo o quanto ele poderia ser cool. Queria dar palestras no YouPix, ser chamado para podcasts famosos e tirar fotos como celebridade nerd na Campus Party.

Mas lá estava ele. Com uma camiseta velha e furada da Camiseteria, que usava como pijama, uma bermuda com elástico frouxo, suja de café e manteiga. Procurava por uma vaga de analista de mídias sociais e, em paralelo, acompanhava o feed de seus 1.612 amigos no Facebook.

Isso o estava deixando bem puto.

Pensava: "nenhum desses filhos da puta leu meus manuais de etiqueta?".

A primeira foto de sua timeline era de um grupo de sete filhotinhos. Uma amiga da época da faculdade tinha compartilhado. A legenda dizia que eles tinham sido abandonados perto da Avenida João Dias. Estavam passando fome e um deles estava bem magrinho. Supostamente.

Ao ver a foto, Zé Paulo resmungou em voz baixa:

— Caralho! Essa puta tem um Shih-Tzu de 1000 reais no apartamento dela e vem querer pagar uma de defensora dos animais? Por que será que ela mesmo não acolhe os bichinhos?

De qualquer maneira, curtiu a foto e marcou alguns amigos que poderiam ajudar. Continuou a rolagem na timeline.

A próxima idiotice foi uma foto tirando sarro da última goleada sofrida pelo Palmeiras. Ficou puto novamente.

Pensou: "É um babaca... Esse é aquele mesmo imbecil que me empurrou quando comemorei o gol que o time dele tomou. É típico. Quem defende que a zoação é comum e saudável no futebol é o primeiro a se inflamar e arrumar briga.".

Engolindo mais um sapo de stress, clicou no status e cancelou a assinatura. "Não estou com saco para essa merda!" — suspirou.

Mais alguns posts abaixo, questionou se os idiotas resolveram aparecer todos juntos ou se era simplesmente o fato de que estava prestando mais atenção no Facebook.

Eis que, um post abaixo do outro, estava uma foto pedindo para cortarem o benefício do 14º dos deputados. Era só chegar a um milhão de compartilhamentos.

Pouco depois, viu um inflamado amigo dando seu apoio à Coreia do Norte e um texto super formal reivindicando ao Facebook os direitos sobre as próprias postagens, fotos e conteúdos publicados.

— Odeio quem não pensa antes de fazer as coisas... Como são idiotas! — falou sozinho.

Mas a próxima carga foi demais. Uma colega de trabalho da última agência em que estava publicou uma notícia de que Suzane Richthofen seria responsável pela presidência da Comissão de Seguridade Social e Família. Lá estava o link do Sensacionalista e o comentário "Que absurdo! Aonde esse país vai parar!".

Zé Paulo ficou em silêncio e começou a suar. Claramente, algo não estava bem.

Até que veio o post de um cara falando: "Big Brother? Funk? Novela? É Brasil! Vai si alienando assim mesmo. Mais uma vez a cultura do pão e circo. É por isso que estamos nessa merda!".

— O maluco quer falar de cultura, ignorância e massificação, mas nem sabe escrever direito! POORRA! Fora que ele quer mudar o mundo pelo Facebook. Caralho. Mas calma aí, se aqui está a concentração dos esforços de todos, é aqui que as coisas vão começar a acontecer? Abaixo-assinados online, piquetes online, pensadores online, mensagens libertadoras online. Mas é tudo tão fútil. O que eu faço?

Os pensamentos, dúvidas e indagações invadiram sua cabeça como um trem-bala pilotado por um hooligan bêbado.

Palpitações, suor excessivo, tremedeira, falta de ar e tontura. Zé Paulo teve um ataque de pânico.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Mono

Helter chegou em casa por volta das 23h. Morava no 7º andar e tinha que ser muito discreto ao entrar no apartamento, pois sua vizinha do andar de baixo era um pé no saco.

Pelas regras do condomínio, após às 22h começava a valer a lei do silêncio. Esse era o aval para a mulher começar a reclamar, ligar na portaria e até bater com um cabo de vassoura no teto. Às vezes, a ranzinza batia tão forte que Helter sentia uma pequena vibração na sola dos pés.

Quando ela começava a bater, Helter resmungava:

— Puta merda! Eu ejaculei na cruz mesmo... O pior é que a puta nem é velha. Deve ser mal-comida... Ou mesmo não-comida!

Dono de uma vasta monocelha desde os 16 anos, Helter é filho de um casal fã dos Beatles. Ele e seu irmão Skelter não chegaram a sofrer bullying na escola, mas não eram dos mais populares.

Ambos eram meio playboyzinhos, e talvez por isso, os outros colegas não gostavam muito deles. Na hora do recreio, um era o único amigo do outro, mesmo estudando em salas diferentes. Não eram pessoas muito agradáveis.

Quando não estavam na escola, estudavam inglês intensivo na Wizard, por isso, eram mais fluentes que o resto dos alunos. Aí, não conversavam em português ao falar mal e rir dos outros estudantes. Escrotinhos.

Hoje, com 23 anos, Helter é um coxinha moderno. Torcedor do Corinthians, vangloria-se como "maloqueiro e sofredor", apesar de morar em um luxuoso condomínio no Alto de Pinheiros. Gosta das baladas do Itaim porque a Vila Madalena é "alternativa" demais.

É viciado em biscoito de polvilho e adora licor de Amarula. Está quase completando uma parede de seu quarto com rótulos da bebida colados.

A-M-A The Killers. Tuitou esses dias que eles são monstros sagrados do Rock n' Roll. Começou a ouvir Fear of the Dark para agradar o chefe, que é fã do Iron Maiden. Vibra quando as bandas de pop-rock da Vila Olímpia tocam sertanejo universitário.

Sofria com um trauma. Há alguns anos, teve uma briga feia com Skelter. Tudo por causa do controle remoto da TV. Um queria assistir ao "À prova de tudo" do Bear Grylls e o outro, "CQC". Ficaram realmente chateados. Mas no fundo, continuavam se amando.

Dormiam no mesmo quarto e, no meio da madrugada, Helter acordou com um estranho ardor no supercílio. Levantou-se da cama e, ainda meio atordoado, viu o corpo de Skelter ensanguentado e esquartejado na cama.

Sobraram apenas a cabeça, rosto com expressão de dor, e o tronco, com o braço esquerdo dilacerado. Uma das pernas estava no chão, ao lado da cabeceira da cama.

Até hoje, tem dúvidas do que viu. Nunca soube se seu cérebro aumentou a gravidade da cena. O caso continuou um mistério e sem solução.

O ponto é que, nessa mesma noite em que a vizinha mal-comida reclamou do barulho, Helter foi dormir puto. Bem puto. Só que o mesmo nível de emputecimento se transformou em pavor quando acordou de madrugada com uma dor conhecida.

Desnorteado, caminhou até o interruptor para acender as luzes, e quando seus olhos se adaptaram à claridade, ficou horrorizado novamente.

Ao lado de seu sapatênis, previamente separado para o casual Friday, estavam três ossos humanos: um crânio e dois fêmures.

— Hein? Como? De novo! Como assim? O que está havendo? — pensou, aflito.

Confuso, ainda não entendia tudo aquilo. Ficou surpreso com a intensidade da dor nos supercílios. Pareciam arder mais que uma ferida embebida em álcool.

Saiu de seu quarto e foi para a sala. Só para tomar um tiro de uma arma calibre 12 bem no meio da testa. Caiu morto na hora.

Era o marido da vizinha aos prantos. Tinha visto um par de sobrancelhas unificadas atacar, matar e devorar sua esposa, que dormia tranquilamente. Seguiu a criatura peluda pelas escadas até o andar de cima. Quando viu seu vizinho sair do quarto, sonolento, com o monstro no rosto, não pensou duas vezes. Atirou para matar.

A monocelha criara vida ao se alimentar de migalhas de biscoito de polvilho que Helter vivia comendo. A bizarra criatura agonizou por mais alguns momentos, rastejou por uns centímetros e finalmente morreu.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Bean Situation: sem freios.

Depois de se estabilizar no emprego, finalmente Alex conseguiu um apartamento para morar sozinho.

Fez todos os cálculos: aluguel, condomínio, conta de luz, gás e água. Com seu novo salário, daria para pagar tudo.

Estava de saco cheio de viver com sua mãe. Ultimamente, brigavam demais e esse é um típico caso em que a distância melhoraria a relação dos dois. Tudo seria uma maravilha: Alex culpava sua mãe por ser tão tímido.

Seus colegas de todos os lugares em que estudou e trabalhou o chamavam de Carpete. Por uma série de fatores.

Diziam que ele tinha sido criado pela avó a base de leite com pera e que jogava bolinhas de gude no carpete do apartamento. Sempre o classificavam como café com leite e, quando Alex ia a uma copa tomar um café expresso, perguntavam se a cafeína não era uma porta de entrada para drogas mais pesadas.

Mas a principal razão do apelido "Carpete" era a cor castanha clara de seu cabelo, além do corte curtinho, bem rente à cabeça.

As possibilidades de piadas e sarros eram quase infinitas.

Enfim chegou o dia e Alex Carpete se mudou para o novo apê. A decoração ficou do jeito que queria. Sofá, TV, Blu-ray player e sua coleção de DVD's do Cheers. Seu quarto era mais simples. Comprara um criado-mudo no Mercado Livre que ficava com a gaveta vazia. Em cima, deixava seus óculos e um livro.

Havia mais roupas penduradas em seu mancebo do que no guarda-roupas. Partia do princípio que calças jeans não sujavam em menos de três semanas.

Lavar louças era tranquilo e cozinhar era fácil. Muitas lasanhas e nuggets congelados para o jantar ao longo da semana. O almoço geralmente era nos restaurantes por quilo que ficavam perto de seu trabalho.

Das tarefas domésticas, a que mais odiava era lavar roupas, atividade que não fazia na casa de sua mãe. Por essa razão que desenvolveu a teoria das três semanas das calças jeans.

Passar camisas era tão horrível que passou a usar apenas camisetas polo. Tinha um shorts de pijamas para dormir que às vezes ficava o mês inteiro sem lavar. Blusas de frio? Ah! Essas nunca sujavam. Só precisava dar uma cheiradinha. Se estivesse com suor, pendurava no varal em qualquer oportunidade de sol e já estava tudo bem.

Alex vivia relaxado com todos esses fatos. Só que existia um fenômeno que lhe causava o pior dos pavores: freada na cueca.

Tomou o primeiro susto logo na estreia de sua área de serviço. Enquanto separava as roupas de baixo para lavar na máquina, se deparou com aquela cena. Uma faixa central, irregular e desbotada no meio do tecido branco.

— Ergh! Minha mãe lavava isso? — pensou com a cara toda contraída de nojo.

A partir daí, começou o que seria a primeira daquelas manias quase imutáveis de quem vive sozinho. Sempre preocupado com as freadas, Alex se policiava com qualquer ameaça de peidinho. Se a barriga fizesse qualquer barulho, já corria para o banheiro.

Agora, além de toda a vergonha que já sentia na maioria das situações sociais, não queria correr o risco de lavar uma freada novamente. Ficou neurótico.

Alex tinha vergonha até de cagar no banheiro da empresa. Entrava lá só em caso de emergência e apenas no horário de menor movimento. Se alguém entrava no toalete para escovar os dentes ou usar o mictório, Alex contraía até mesmo seus pés, para que não o identificassem em uma das cabines.

Queria ser o mais discreto possível. Odiava que quaisquer barulhos fossem amplificados pela concha acústica da privada.

Essa discrição causou-lhe um grande problema. Numa onda sustentável da empresa, colocaram um aviso na parte de dentro da porta do banheiro: "Ao sair, apague as luzes. A natureza agradece!".

Depois de comer um pacote inteiro de Doritos Sweet Chili na parte da tarde, Alex precisou ir ao banheiro. Era por volta das 17h30, um horário bem tranquilo. Pena que um cara do Departamento de Planejamento Financeiro foi escovar os dentes poucos minutos depois.

Como era esperado, Alex segurou seus ruídos.

Era realmente silencioso e seu colega não percebeu que havia gente na cabine. Saiu e apagou as luzes.

Segundos depois, apenas uma super audição poderia ouvir os sussurros desesperados do banheiro masculino:

— Ei... Alguém?

Tempos depois:

— Eeeei...

Mais tarde:

— Alô?

Num ciclo de vergonha, planos de fuga e mais vergonha, o tempo foi passando. Todos os colegas foram embora, os seguranças fecharam as portas da empresa e acionaram o alarme.

Alex passou a noite inteira sentado na privada. Cochilou algumas vezes. Pensou que tudo poderia ser resolvido se o colega tivesse percebido que ele estava lá. Culpou sua mãe mais uma vez por ser tão tímido. Resolveu ficar por lá mesmo pela vergonha que ia sentir se alguém soubesse dessa história.

No dia seguinte, esperou as primeiras luzes do dia, se limpou e fingiu que chegou mais cedo ao escritório.

Depois, fez cálculos no orçamento para utilizar uma lavanderia.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Azedo e seus idiotas

O sujeito andava irritado.

A questão Tostines era: estava azedo porque lia Bukowski? Ou lia Bukowski porque estava azedo?

Indignado com o mundo, via documentários chocantes para virar vegetariano, fez parte de sete abaixo-assinados do Avaaz, seguia o Twitter do Brasil Urgente e recebia fotos de cachorros maltratados no Facebook.

Era só o que chamava sua atenção naqueles dias.

Para a maioria das questões, sua resposta era uma só.

— Cara, você viu que Fulano trocou de emprego?

— Idiota...

A resposta podia ser usada em vários outros assuntos.

— O povo do RH mandou a lista de documentos que você precisa para se incluir no plano de saúde.

— Idiotas...

— Sua mãe ligou!

— Idiota...

— Seu irmãozinho fez este desenho. Está vendo? Você é o de capa. Voando e salvando as pessoas nesse prédio em chamas, depois de acertar o tiranossauro que soltava fogo. Acho que ele pensa que você é um super herói.

— É um idiota...

Para alguém irritadiço, tudo que é irritante fica turbinado.

Acordar às segundas era um inferno. Os olhos doíam com a claridade cinza do dia nublado na janela. Não queria acender a luz logo de manhã porque a conta de energia veio muito alta.

No meio da semana, reencontrou uns antigos colegas de trabalho na hora do almoço. Eram legais, mas constatou que só gostava deles na época em que trabalharam juntos. Deram um aperto de mãos e disseram frases clichês de paulistano:

— Cara! Que coincidência! Quanto tempo! Mundo pequeno, hein? Como vai Fulano? E Ciclano? Tem visto a Fulana? Ela continua gostosa? Casou? Nossa! Lembra quando a gente comeu aquele sanduíche do tuppleware sem etiqueta da geladeira? Vamos combinar um happy hour!

Small talk, uma lembrança engraçada e veio aquele silêncio constrangedor da falta de assunto. Não fazia mais questão de continuar a conversa. Despediu-se de todos e foi para a fila do buffet para montar e pesar seu prato.

No metrô, irritava-se com os apressados. Dava ombradas e estendia seu cotovelo em qualquer um que aumentasse a velocidade em ultrapassagens na boca da escada rolante.

Quanto ao trânsito, andava com seu carro a 15 km/h no momento em que ouvia uma buzinada na abertura do semáforo. Ainda fazia questão de dar pequenos trancos assim que colocava a primeira marcha.

Certa vez, parou seu Celta no meio da rua, ligou o pisca-alerta, abriu o vidro dianteiro e fez sinal de que o carro estava quebrado, apontando o polegar para baixo. Quando o enfurecido motorista do carro de trás o passava, nosso querido personagem azedo disparava o carro, cantando pneus.

Acho que estava torcendo para se meter numa briga.

Durante as aulas do MBA, ficava puto com o excesso de participação dos outros alunos.

— Esses idiotas querem mostrar que sabem tanto ou mais que o professor. Por que não param de interromper a porra da aula? — pensava e às vezes, resmungava em voz baixa.

O sujeito estava se sentindo meio mal. Cogitou fazer terapia para entender as razões existenciais de estar tão mal-humorado. Por que será que andava tão azedo?

Tinha um jantar marcado na terça-feira com uma colega do MBA. Ela tinha a mesma opinião sobre as constantes interrupções das aulas pelos idiotas que "sabiam tudo". Já tinham um assunto em comum.

O azedume do sujeito resultava em comentários sarcásticos e piadas ácidas. Seu mau-humor o tornava engraçado. Como resultado, conseguiu arrancar várias gargalhadas dela.

O encontro terminou bem.

No dia seguinte, ele acordou e sorriu para o sol. Tudo o que precisava era de uma boa trepada.