segunda-feira, 8 de abril de 2013

Mono

Helter chegou em casa por volta das 23h. Morava no 7º andar e tinha que ser muito discreto ao entrar no apartamento, pois sua vizinha do andar de baixo era um pé no saco.

Pelas regras do condomínio, após às 22h começava a valer a lei do silêncio. Esse era o aval para a mulher começar a reclamar, ligar na portaria e até bater com um cabo de vassoura no teto. Às vezes, a ranzinza batia tão forte que Helter sentia uma pequena vibração na sola dos pés.

Quando ela começava a bater, Helter resmungava:

— Puta merda! Eu ejaculei na cruz mesmo... O pior é que a puta nem é velha. Deve ser mal-comida... Ou mesmo não-comida!

Dono de uma vasta monocelha desde os 16 anos, Helter é filho de um casal fã dos Beatles. Ele e seu irmão Skelter não chegaram a sofrer bullying na escola, mas não eram dos mais populares.

Ambos eram meio playboyzinhos, e talvez por isso, os outros colegas não gostavam muito deles. Na hora do recreio, um era o único amigo do outro, mesmo estudando em salas diferentes. Não eram pessoas muito agradáveis.

Quando não estavam na escola, estudavam inglês intensivo na Wizard, por isso, eram mais fluentes que o resto dos alunos. Aí, não conversavam em português ao falar mal e rir dos outros estudantes. Escrotinhos.

Hoje, com 23 anos, Helter é um coxinha moderno. Torcedor do Corinthians, vangloria-se como "maloqueiro e sofredor", apesar de morar em um luxuoso condomínio no Alto de Pinheiros. Gosta das baladas do Itaim porque a Vila Madalena é "alternativa" demais.

É viciado em biscoito de polvilho e adora licor de Amarula. Está quase completando uma parede de seu quarto com rótulos da bebida colados.

A-M-A The Killers. Tuitou esses dias que eles são monstros sagrados do Rock n' Roll. Começou a ouvir Fear of the Dark para agradar o chefe, que é fã do Iron Maiden. Vibra quando as bandas de pop-rock da Vila Olímpia tocam sertanejo universitário.

Sofria com um trauma. Há alguns anos, teve uma briga feia com Skelter. Tudo por causa do controle remoto da TV. Um queria assistir ao "À prova de tudo" do Bear Grylls e o outro, "CQC". Ficaram realmente chateados. Mas no fundo, continuavam se amando.

Dormiam no mesmo quarto e, no meio da madrugada, Helter acordou com um estranho ardor no supercílio. Levantou-se da cama e, ainda meio atordoado, viu o corpo de Skelter ensanguentado e esquartejado na cama.

Sobraram apenas a cabeça, rosto com expressão de dor, e o tronco, com o braço esquerdo dilacerado. Uma das pernas estava no chão, ao lado da cabeceira da cama.

Até hoje, tem dúvidas do que viu. Nunca soube se seu cérebro aumentou a gravidade da cena. O caso continuou um mistério e sem solução.

O ponto é que, nessa mesma noite em que a vizinha mal-comida reclamou do barulho, Helter foi dormir puto. Bem puto. Só que o mesmo nível de emputecimento se transformou em pavor quando acordou de madrugada com uma dor conhecida.

Desnorteado, caminhou até o interruptor para acender as luzes, e quando seus olhos se adaptaram à claridade, ficou horrorizado novamente.

Ao lado de seu sapatênis, previamente separado para o casual Friday, estavam três ossos humanos: um crânio e dois fêmures.

— Hein? Como? De novo! Como assim? O que está havendo? — pensou, aflito.

Confuso, ainda não entendia tudo aquilo. Ficou surpreso com a intensidade da dor nos supercílios. Pareciam arder mais que uma ferida embebida em álcool.

Saiu de seu quarto e foi para a sala. Só para tomar um tiro de uma arma calibre 12 bem no meio da testa. Caiu morto na hora.

Era o marido da vizinha aos prantos. Tinha visto um par de sobrancelhas unificadas atacar, matar e devorar sua esposa, que dormia tranquilamente. Seguiu a criatura peluda pelas escadas até o andar de cima. Quando viu seu vizinho sair do quarto, sonolento, com o monstro no rosto, não pensou duas vezes. Atirou para matar.

A monocelha criara vida ao se alimentar de migalhas de biscoito de polvilho que Helter vivia comendo. A bizarra criatura agonizou por mais alguns momentos, rastejou por uns centímetros e finalmente morreu.

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