terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Velho batuta

 

Tocava baixo na banda ZZ Top Cover SP. A genética ajudava. Sua barba crescia bem rápido e em alguns meses, chegou ao comprimento necessário.

Tinha largado seu último emprego para se dedicar à música, mas as coisas não andavam bem.

"É só uma fase!" — pensava. Além dos covers nas noites do Bixiga e Moema, investia pesado as economias que juntou em seu projeto de composições próprias. Só que os rendimentos das aplicações não estavam sendo suficientes para cobrir todas as despesas.

"Preciso de um bico!". Não queria nem pensar em fazer algo parecido com as atividades do último trabalho dito "normal". Ou seja: nada relacionado a Departamento Pessoal ou Recursos Humanos. Nada de planilhas, CLT, relatórios, orçamento de pessoal, processos seletivos ou dinâmicas de grupo estapafúrdias.

Tinha calafrios quando se lembrava de seu último chefe. O cara era um neurótico hipócrita. Ficava com a antena ligada procurando momentos de ócio de seus subordinados, mas como sentava no canto da sala, passava horas do dia resolvendo assuntos pessoais. Pesquisava preços de tintas para a reforma de sua casa, colhia tranquilamente seus morangos em Farmville e assistia a tutoriais de oito minutos sobre cortes de cabelo no YouTube.

A ansiedade desse gestor era grande. Aplicava tanta força no mouse, que quando o mexia, o atrito com a mesa emitia um som parecido com o de uma buzina de algodão-doce.

Mas eram tempos passados. Desistira de "ser alguém na vida", de pegar o trem lotado todos os dias, de fazer baldeações por corredores estreitos com milhares de pessoas, de ocasionalmente limpar micro-pingos de catarro na manga da camisa quando alguém espirrava sem colocar a mão na boca.

Tudo isso passou por sua cabeça num segundo, enquanto refletia sobre as escolhas que tinha feito na vida e no momento em que aceitou o emprego temporário de Papai Noel do Shopping Center Norte. Um cargo muito concorrido após anos e anos de um jingle inesquecível.

Não estava arrependido. A comprida e sedosa barba natural facilitou a escolha e começou a trabalhar logo no começo de dezembro.

As exigências eram simples: sorrir, ouvir os pedidos das crianças e não ter ereções.

Só que nosso amigo foi proativo: passava lindas mensagens e lições para os pequeninos e seus pais.

— Oi, Papai Noel!

— Ho... Ho... Ho... Olá, pequerrucho! Quantos anos você tem?

— 7 anos!

— E o que você quer de presente de Natal?

— Eu quero um iPad!

— Tenho uma coisa melhor aqui: um vale-lama. Se você chamar um amiguinho para brincar no parquinho mais perto da sua casa após um dia de chuva, você mostra esse cupom para o seus pais. Assim, você pode brincar lá mesmo se tiver lama e pode se sujar à vontade.

— ... Brigadu... — respondeu o menino, sem entender direito.

Com muita criatividade, distribuía diferentes cupons. Além do vale-lama, tinha também o vale-dormida na casa do amiguinho, vale-sobremesa extra, vale-brincadeira com os pais, vale-futebol na chuva e um vale-visita ao parque.

O mês foi passando, e como todos os trabalhos que exigem criatividade, mas que não valorizam os criativos, o saco de nosso protagonista foi se enchendo. Sem trocadilhos.

A cada criança birrenta, o humor do Papai Noel transitava entre a ironia e a completa acidez nas palavras.

— Eu quero o game "Unilever Dish Monsters 3D" para Kinect!

— Dish Monsters? Como é esse jogo? — perguntou o Papai Noel em um súbito lampejo de genuíno interesse.

— É um jogo que se passa na cozinha de uma casa! Bactérias alienígenas planejam o domínio da Terra e se alimentam da combinação de restos de arroz seco grudados em porcelanas. Para combater eles, você precisa lavar a louça com o detergente especial criado pela Unilever! Aí, você faz movimentos circulares com a mão direita, enquanto segura o prato com a mão esquerda! Assim, com o braço esticado na frente e mexendo o pulso, você liga e desliga a torneira!

— Olha só!

E o garoto continuou:

—  Se deixar o prato de molho na água quente, torneira da direita, você facilita a remoção do arroz seco na louça!

O Papai Noel não aguentou, interrompeu a criança e berrou com toda a força do diafragma:

— PORRA! ENTÃO, POR QUE CARALHAS VOCÊ NÃO LAVA A LOUÇA DE VERDADE E AJUDA SEUS PAIS?!

Silêncio no Center Norte. Um fato absolutamente inédito em quase 30 anos de existência, se considerarmos que era dezembro, poucas semanas do natal. Todos ficaram boquiabertos com o grito do bom velhinho.

O capitalismo. Em menos de 5 minutos, o burburinho voltou e todos continuaram com suas compras.

Nosso amigo natalino foi despedido do shopping, mas logo conseguiu outro emprego: uma agência de publicidade o contratara para fazer posts na FanPage "Papai Noel Sincero".