terça-feira, 7 de maio de 2013

Pressão

Pressa e pressão. Uma combinação que pode gerar consequências, digamos, chamativas.

O domingo tinha sido divertido. A namorada de um dos amigos de Ricardo fez uma festa de aniversário. Todos os oito amigos se reuniram em um boteco que servia comida mineira.

Cerveja, torresmo e porções de feijão tropeiro. Os amigos se esbaldaram e elogiaram o local.

Como o evento seria no domingo, a turma optou por marcar em um horário pouco mais cedo que o tradicional happy hour de sexta. Encontraram-se no bar logo após a rodada do futebol, perto das 18h.

A conversa sempre rende com esse grupo e a coisa foi terminar tarde do mesmo jeito. Lá pela 1h, Ricardo saiu do bar e foi para casa. Chegou bêbado em seu apartamento às 2h e caiu direto na cama. Chegou a quicar no colchão e cair no vão entre a cama e a parede. Derrubou o abajur, mas sem quebrar. Tudo sob controle. Ninguém tinha acordado.

Ricardo tinha que levantar cedo na segunda-feira. Dormir bêbado costuma ser bem relaxante, mas no dia seguinte, parece que você foi atropelado por um Boeing. É ainda mais torturante se você precisa levantar mais cedo que o usual, ao som do alarme escandaloso do celular.

Ressaca. Sem tempo para banho. Ricardo foi enrolando com o botão soneca. Continuou assim de cinco em cinco minutos até que não teve jeito. A última olhada que deu no display do smartphone serviu para dar uma carga de adrenalina que o ajudou a despertar de vez:

— Puta merda! — Gritou e respirou fundo. Estava atrasado.

Vestiu as primeiras roupas que viu disponíveis e saiu. Sem tomar café. Sem ir ao banheiro. Sem dar tchau para ninguém.

E se dirigiu ao ponto de ônibus. Fazia frio. No meio do caminho, sentiu uma pequenina pontada na barriga.

— Cacete... Não acredito que vou precisar cagar agora... — pensou, mas continuou seu caminho.

ROOOOOONC!

Sua barriga roncou. Uma grande e sonora cólica intestinal. Ricardo ficou até preocupado se as outras pessoas do ponto de ônibus ouviram. Havia muito barulho de carros e vendedores ambulantes, mas só para garantir, ele disfarçou. Passou a mão na altura do estômago e comentou com uma pessoa ao seu lado: "Nossa! Que fome...".

Completamente desinteressada no assunto, a pessoa só virou o rosto para Ricardo, deu um sorriso amarelo e voltou a olhar para a rua.

Ainda dava para aguentar a dor. Até que estava levinha. Era só se distrair com outras coisas. "Olha só! Aquele povo do supermercado ainda não se ligou que agora, a rua é mão única. Entrou no sentido proibido. Ah! Agora volta pro sentido certo, tonto! Hehehe! Mais um! Outro. Nossa... Essa ficou até vermelha de sem-graça."

Isso o distraiu por mais algum tempo: "não, cachorrinho! não atravessa agora... Isso. Volta para a calçada. Ufa... Agora fica aí... Vixe. Olha o tamanho daquela poça. Mas de onde ela veio? Não choveu. É só uma poça no meio da calçada seca. A rua está seca."

Enfim, o ônibus chegou. Cheio. Ricardo já devia ter previsto. Quando demora assim, não é um bom sinal. Normalmente, quando o busão vem cheio, ele deixa passar e pega outro. Mas estava atrasado demais e resolveu encarar a viagem.

Subiu, seguido de boa parte das pessoas do ponto. Chegou a poucos centímetros da catraca. Não dava para ir mais. Tudo bem, estava tão lotado que não conseguiria tirar o bilhete-único do bolso.

O corredor do ônibus já estava parecendo o útero da namorada do Shaquille O' Neal carregando os octogêmeos dele. E as pessoas continuavam a entrar. Alguns passageiros estavam grudados na porta central do veículo. Testas e bochechas oleosas eram esfregadas no vidro. As impressões faciais se misturavam formando um grande rosto disforme com vários olhos e bocas.

Será que tentavam bater algum recorde? O ônibus continuava parado no ponto e alguns atrasados ainda faziam seus esforços para entrar, mas a essa altura, seria impossível.

O ônibus partiu com as portas abertas. Não havia problemas com freadas, buracos ou aceleradas bruscas porque simplesmente não existia espaço para os passageiros caírem. Todos apoiados uns nos outros da maneira mais segura que poderia existir.

A agonia de Ricardo continuava. Os minutos pareciam horas enquanto sentia aquela dor de barriga que latejava. Ele começou a suar. Nem é possível dizer que suava frio porque o ônibus estava abafado demais. Todas as janelas fechadas.

Ele engolia seco. Sua bunda estava tão contraída que os músculos poderiam entrar em fadiga a qualquer momento. Ricardo olhava para o teto do ônibus e lia a mensagem da Vivo diversas vezes em voz baixa:

— Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa. Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa. Pedestre Vivo. Olha para todos os lados. Faz o gesto de pedestre. Atravessa na faixa... Eu... Preciso... Peidar...

Além da bunda, o rosto de Ricardo também se contraiu. Fechou os olhos com tanta força que começou a ver pequenas estrelas. Tentou se curvar, mas seu queixo bateu no ombro de uma senhora que estava em sua frente.

— D... Desculpe... — falou.

Com seus 1,87 m de altura, Ricardo apoiava sua mão direita no teto do ônibus. Não tinha muita escolha pois não dava para abaixar o braço devido à lotação. O máximo que conseguiu foi dobrar o cotovelo e colocar as costas da mão na testa.

Começou a sentir calafrios. Não dava mais para aguentar. Nos pensamentos, já cogitava a ideia:

— Se eu peidar agora, ninguém vai sentir. Não vai dar para desconfiar de ninguém. Tem muita gente.  O problema é que a pessoa atrás de mim vai sentir um sopro de calor concentrado... O que eu faço? O que eu faço? Não dá mais para aguentar!

Virou o pescoço para ver quem estava perto de suas costas. Percebeu que a pessoa estava de mochila. O calor do peido se dissiparia antes de entrar em qualquer contato com ela.

— É isso. Não dá mais para aguentar. Vou peidar. — pensou e decidiu.

Respirou fundo e liberou a pressão.

Pena que a sensação de alívio foi quase inexistente de tão rápida.

De tão lotado, a pequena pressão gerada pelo peido de Ricardo foi suficiente para explodir o ônibus.

A carroceria se rompeu. Os passageiros foram arremessados em diferentes direções da Faria Lima. Uma senhora ficou pendurada em um galho de árvore. O cobrador e o motoristas ficaram presos na carcaça do ônibus por causa do cinto de segurança.

Na imprensa, o assunto repercutiu durante uma semana. O que teria causado tamanha explosão?

Especialistas criaram uma teoria que passou em todos os jornais da TV, com simulações e ilustrações 3D. Em geral, as narrações dos repórteres diziam:

— Em temperaturas mais baixas, boa parcela da população utiliza roupas de lã. Por uma infeliz coincidência, a grande maioria dos passageiros estava com blusas desse material. A lotação excedida do ônibus teria feito com que as pessoas ficassem mais próximas e, por consequência, com que se tocassem e as blusas criassem atrito. O atrito gerou eletricidade estática. A eletricidade estática reagiu com a polaridade da carroceria, do tanque do ônibus e provavelmente com a tubulação de gás da rua. Tudo isso gerou uma faísca que provocou a explosão.

Essa foi a teoria aceita.

Ricardo sabia da verdade, mas ficou quieto. Ele sobreviveu à explosão por estar no epicentro. E a vida continua.