sexta-feira, 19 de abril de 2013

Catota

Se olhar com atenção, dá para perceber uma série de tiques e manias das pessoas à sua volta. Alguns são bem discretos, outros exagerados.

Lindolfo tinha muito medo que seu nariz estivesse sujo. Odiava pensar que alguma sujeirinha seca ou fragmentos de ranho solificados ficassem pendurados e à vista em suas narinas.

Claro que sua cabeça sempre exagerava nas proporções do fato. Em seu devaneio, algo verde e disforme estaria preso nos pelos do nariz como um macaco bêbado de frutas fermentadas enroscado em cipós. Algo gigantesco balançando para lá e para cá prestes a cair em sua camiseta.

Em função dessa neurose, Lindolfo constantemente conferia se seu nariz estava sujo. De tempos em tempos, levantava a mão direita e passava o dedo indicador nas bordas das narinas. Tentava ser discreto. Não queria que as pessoas pensassem que estava enfiando o dedo lá dentro. Isso seria falta de educação. E realmente era só uma conferência superficial.

Se alguém reparasse, ele fingia que estava pensativo. Mantinha a mão tampando a região da boca e olhava para o horizonte vazio. Às vezes, até franzia a testa. Levantava uma das sobrancelhas. Só para dar a entender que estava imerso em profundos questionamentos. De repente, para voltar à realidade, Lindolfo simulava uma rápida e elegante coçadinha na ponta do nariz.

Nosso preocupado amigo estava cultivando um bigode. Resolveu inovar no visual. O problema é que quando os pelos começaram a ficar mais longos e desajeitados, faziam um pouco de cócegas e causavam coceira. Resultado? Amplificou sua sensação de nariz sujo, fazendo com que Lindolfo conferisse a limpeza ainda mais vezes durante o dia.

Andava sempre com um pacote de lenços no bolso. Não queria passar de novo pela situação mais constrangedora que viveu na faculdade. Era inverno e conversava com alguns amigos no intervalo de duas aulas. Como estava um pouco resfriado, precisou espirrar. Foi incontrolável. Chegou a por a mão no rosto, mas não adiantou. O muco verde-esbranquiçado escorria no meio de seus dedos.

Ficou tão desesperado que saiu correndo da sala de aula, largando a conversa com seus amigos. Que vergonha! A minazinha que ocasionalmente xavecava também estava no grupo.

Obviamente, seus colegas não ligaram. Continuaram o assunto normalmente. O que realmente chamou a atenção foi a velocidade de Lindolfo, que se levantou e correu para o banheiro de maneira súbita.

— Lindolfo, espirro é normal! Você está resfriado. Eu pensei que você ia correr, pegar um ônibus e fugir para casa de tão rápido que você saiu! — disse a minazinha.

Os anos passaram. Perdeu o contato com a garota. O pacote de Kleenex foi incorporado ao bolso, e de lá, nunca mais saiu. Mesmo no verão, ou quando a rinite atacava, ele era bem aproveitado e renovado de tempos em tempos.

Tudo seguia na normalidade. Essa nóia já fazia parte do dia a dia. Deixou de incomodar e não atrapalhava suas atividades. Era só ter qualquer sensação no nariz, de um vento a um toque dos bigodes, que rapidamente Lindolfo conferia a limpeza.

Ficar reparando tão incansavelmente no próprio nariz fez com que Lindolfo também fosse muito atento, observador e detalhista nas narinas dos outros.

Percebia a metros de distância se alguém estava com o nariz escorrendo ou com alguma melequinha pendurada. Isso não se aplicava apenas ao universo nasal. Encontrava nas pessoas remelas nos olhos durante a manhã, fragmentos de rúcula, alface ou feijão nos dentes depois do almoço e ocasionalmente micro farelos de pão nas barbas e camisetas.

Flocos de caspa eram como holofotes, show de laser e fogos de artifício fosforescentes saindo diretamente do couro cabeludo de seus colegas de trabalho.

Essa percepção super aguçada a secreções discrepantes no rosto dos outros também não incomodava. Até o dia em que fez uma reunião com o Vice Presidente Regional da empresa em que trabalhava.

Logo que a reunião começou, do outro lado da enorme mesa da sala, Lindolfo conseguiu enxergar uma bolinha branca de baba que ficava próxima ao canto da boca do VP. No lábio inferior. Era arredondada e tinha poucas micro bolhinhas de espuma.

Lindolfo desfocou. Não prestava mais atenção a qualquer assunto tratado naquele momento. A bolinha de baba estacionada parecia um iglu. Passou a imaginar esquimós microscópicos vivendo ali. Pequenas pessoas caçando restos de comida que sobravam abaixo da língua ou nos dentes do executivo.

A cada vez que o VP fechava a boca enquanto falava sobre algum tópico, formava-se um fio de cuspe que, na visão de Lindolfo, subia, descolava do lábio superior e descia em câmera lenta até voltar à forma original.

Começou a ficar tenso com aquela imagem. O vice presidente passava a língua na boca, tirava a gota de cuspe, mas sempre em seguida, ela voltava. Às vezes maior. Às vezes menor. Mas sempre voltava.

Lindolfo queria levantar, sacar uma folha quádrupla de lenço e limpar aquilo. Suou frio para resistir a essa vontade. Foi difícil. Desviava o olhar, desenhava um lago com montanhas em seu caderno de anotações, mas toda vez que parava, a primeira coisa que lhe chamava o olhar era a meia esfera de saliva na boca do cara.

Os minutos se passaram e Lindolfo continuou focado no movimento do igluzinho de cuspe. Ele finalmente aceitou que não prestaria mais atenção na reunião, até que ouviu VP falar:

— Concorda, Sr. Lindolfo?

— Er... É... Ok! Concordo!

Todos aplaudiram. Lindolfo acabara de ser transferido para a filial da empresa em Roraima.

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