Todas as segundas e quartas, tem o curso de pós-graduação em Psicologia Hospitalar.
Clarice se formou na faculdade em 2002. Por conta das oportunidades disponíveis no mercado, iniciou um estágio em Recursos Humanos no segundo ano, mas nunca abandonou seu sonho de ser psicóloga na área da saúde.
Por conta desse desejo, mesmo na época em que estagiava e era efetivada no RH da Pássaros de Goiânia Construção e Vendas, fez quatro pós-graduações: uma em Psicologia da Saúde, outra em Psicossomática, além das especializações em Psicanálise moderna e Psicopatologia de Lacan.
E ia para a nova pós todas as segundas e quartas. Sempre com seus óculos de armações grossas azuis, seus cabelos soltos, na altura dos ombros, com reflexos loiros e seu tablet com teclado físico. Tinha uma coleção de sapatos sociais com um saltinho de 5 cm que combinavam com outro conjunto de terninhos sociais.
Chegava às aulas geralmente com um pão de batata, mas dependendo da pressa (e das nóias com o peso) às vezes recorria a seu estoque de barrinhas de cereal, que sempre comprava em um atacadista perto da empresa.
Cinco anos de faculdade até 2002, mais quase 10 anos de pós-graduações, e ainda assim Clarice continuava pensando em descobrir um manual de instruções ou guia infalível ilustrado para o comportamento humano.
Assistia demais a séries como "House", "The Mentalist", "Bones" e "Lie to me". Achava que conseguia reparar nos mesmos detalhes que os protagonistas dos seriados, tanto em entrevistas de processo seletivo na Pássaros de Goiânia, quanto em seus escassos atendimentos psicoterapêuticos.
Apesar do forte barulho "toc-toc" que seus sapatos faziam no chão a cada passo que dava, Clarice parecia flutuar no ar. Fazia questão de olhar nos olhos das pessoas com quem conversava.
A máscara de psicóloga clínica nunca saía de seu rosto. No trabalho, quando atendia a algum funcionário da empresa, tinha o seguinte ritual:
— Bom dia, Clarice! Posso tirar uma dúvida com você?
— Claro! — respondia. E tirava os óculos, deixava sobre a mesa e colocava a mão direita no queixo, com o dedo indicador na sua bochecha apontando para a orelha. Era um detalhe importante que tinha lido em um livro de linguagem corporal: seu dedo indicava o ouvido para mostrar que estava aberta a ouvir.
Enquanto falavam com ela, Clarice fazia uma expressão facial de profunda reflexão sobre o que a pessoa estava dizendo. Franzia a testa, sorria e acenava discretamente com a cabeça para mostrar concordância. Quando necessário, também fechava levemente os olhos e contraía a boca. Tudo dependia do assunto tratado. Ela tinha um leque enorme de expressões para incentivar quem estava falando.
Quando Clarice se formou na faculdade, passou a sentir que podia conversar de igual para igual com seus professores. Agora, eles são colegas de trabalho. Uma postura que digamos, tumultuou todas suas aulas em todos os cursos de pós-graduação que fez.
Porém, a gota d'água foi na última quarta-feira.
O professor discutia um caso clínico de outra aluna com a sala de aula. Em algum momento, ele pediu para a aluna investigar melhor o caso com o paciente.
Citou uma recente pesquisa relacionada ao assunto. Os resultados do trabalho em questão denunciavam várias inconsistências nos comportamentos e reações do paciente da aluna. No caso, ele seria uma gigante exceção a uma forte tendência comportamental.
Claro. Exceções podem ocorrer. Pesquisas não são manuais de comportamento humano. O professor pediu apenas para a aluna investigar melhor. E ela aceitou o conselho.
O problema foi quando Clarice resolveu se meter no debate. Parte por necessidade de autoafirmação, parte por não respeitar muito aquele colega de trabalho que ministrava aulas. Contou um caso clínico parecido e questionou:
— Quer dizer que ela não pode acreditar no paciente dela? E a relação de confiança? Comigo aconteceu algo bem parecido! — a ironia aqui é Clarice ser fã de House, que afirma: "everybody lies!".
A discussão continuou por alguns minutos. Na cabeça de todos, a balança pesava: trabalho de pesquisa internacional X crazy bitch com três casos clínicos na carreira.
E prosseguiu. Duas alunas aproveitaram para ir ao banheiro. O professor bufava. A mais novinha do curso dormia na cadeira. Outra mulher acessava ao Facebook.
O único homem da sala, com 1,90 m de altura, ficou puto. Levantou da cadeira dele e foi em direção à Clarice.
Como um príncipe, levantou-a nos braços.
E como um ogro, jogou-a pela janela da sala de aula, no corredor da universidade.
Ele foi expulso do curso. Clarice vai voltar na segunda seguinte.
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