quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Lesma


Era uma tarde preguiçosa no domingo de Carnaval. Esperava por alguns amigos no quiosque bem em frente à praia das Astúrias.

Eu tinha sido o único a acordar sem ressaca naquele dia e resolvi tomar umas brejas até eles chegarem. Aproveitei para ler meu livro em algum lugar que tivesse luz. Mentira. Eu poderia acender as luzes sem incomodar ninguém no apartamento, mas a cerveja tinha acabado.

A praia estava movimentada. Tanto que não conseguia prestar atenção na minha leitura. Resolvi olhar o mar, aproveitar a brisa e continuar com a cerveja.

De vez em quando, dava umas folheadas no livro. Abria em páginas aleatórias anteriores só para confirmar se eu tinha guardado o conteúdo. Coisa besta.

A cerveja estava deliciosamente gelada. Não me lembro se era Original ou Serra Malte. Quando estava para tomar mais um gole, um Uno novo verde lumicolor estacionou na rua de frente para a praia.

De lá, desceu um casal de mãos dadas. Tinham aproximadamente uns 25 anos. A menina carregava na mão esquerda um travesseiro. O cara acompanhava seus passos enquanto olhava se podia travar o carro e acionar o alarme.

Logo atrás deles, vieram uma amiga e um amigo. Obviamente não estavam juntos, mas claramente ele estava tentando alguma coisa. O primeiro casal ia bem mais na frente para dar mais tempo a sós para os amigos.

A menina arrastava uma mala com rodinhas pela calçada. O menino se ofereceu para ajudar.

— Dá aqui que eu levo! — com o esboço de um sorriso.

— Não! Eu levo! — ela respondeu, também sorrindo.

— Dá aqui! — e tomou a mala da mão dela. Ela riu.

A abordagem foi rude, mas bem-humorada. Ele queria deixar sua gentileza e cavalheirismo nas entrelinhas. É aquela insegurança. As gentilezas escapavam aos poucos. Parecia uma criança com boia de dinossauro tentando entrar na água gelada. Mergulhava o dedão, sentava na borda da piscina com as canelas enfiadas na água, molhava a mão direita... Tudo isso poderia resultar num mergulho ou não.

Lembrei na hora de uma viagem que fiz com dois casais de amigos. Uma lembrança que dá vontade de pegar uma máquina do tempo e me estapear cinco vezes na cara lá na época.

Já saíamos bastante juntos. Eu era o único solteiro daquela turma. Não era tão constrangedor. Eles diziam: "não são dois casais e um solteiro. São cinco amigos!". Era verdade. Eu acreditava. Acho que eu era divertido o suficiente para me quererem por perto.

Um dia, a irmã de uma das meninas terminou seu namoro. Ela passou a acompanhar a galera nos encontros.

Sempre fui lerdo. E sempre duvidei da minha percepção. Hoje, sobram facepalms quando essas coisas surgem de repente na cabeça.

Tínhamos ido a uma churrascaria quando a conheci. Falei minhas besteiras normalmente. Sem nervosismo. Vagamente lembro de umas trocas de olhares. Nada demais.

Semanas depois, fomos todos para um bar. Rolaram cervejas e algumas doses de tequila naquele sábado à noite. Entre risos descontrolados e longas abobrinhas, não sei exatamente de onde veio a ideia, mas combinamos uma viagem no próximo feriado prolongado. Todos juntos. Todos toparam.

Cada "casal" ficaria em um chalé.

Ainda no bar, ideias de bêbados, fizeram com que eu assinasse em um guardanapo o termo de compromisso de que não haveria investidas na menina enquanto estivéssemos no quarto. Como se eles não me conhecessem.

A viagem até a cidade foi um pouco mais estranha. Surgiam alguns momentos no banco de trás em que faltava assunto. Nada de muito anormal.

Olhando para trás, se fosse escrever uma carta para meu eu do passado, diria que o erro número um fora cometido logo no check-in. Chegando no chalé que dividiríamos, havia uma cama de casal e outra de solteiro.

Em minha proativa e estúpida gentileza típica dos "nice guys finish last", escolhi a cama de solteiro. BAM! O primeiro passo para a tão temida friendzone.

Foram três diárias. Tínhamos levado bebidas variadas. A tequila era a favorita. Unanimidade. Logo no primeiro shot, quis mostrar virilidade e virei um copo descartável que equivalia a uma dose maior que a normal. Acho que deu para ver o movimento do meu estômago e toda a contração da minha caixa torácica tentando devolver o líquido em um misto de engasgo, soluço e refluxo. Todos se espantaram, mas deu tudo certo. A tiração de sarro até que foi curta.

Mais álcool madrugada a dentro. Risadas, besteiras, risadas, zoeira, risadas, sarros. Eu fazia o alvo gargalhar. Acho que foi um ponto positivo. Só não me lembro se eram palhaçadas que queimavam meu filme.

Lá pelas 3 horas, o primeiro casal se cansou e foi dormir. Despediram-se. Foi a nossa deixa. Aproveitamos e fomos também para o nosso quarto.

Deitei na minha cama de solteiro e ela, na dela de casal. Conversamos por mais algumas horas. Até reclamaram das gargalhadas dela durante o silêncio da pousada. Mas no fim, dormimos. Como nos outros dias até o fim da estada. Cada um em sua cama.

Acho que o momento mais próximo que tivemos foi quando deitamos juntos na cama de casal, bêbados, para tirar umas selfies com uma máquina fotográfica analógica. Nem sei aonde foram parar essas fotos. Também não me lembro porque naquele momento acabou não rolando nada.

Faz muito tempo que não vejo ou falo com qualquer um daqueles cinco. Um casal se desfez, outro já teve filhos. A prospect já deve até estar casada.

Nossa! Parece até uma daquelas histórias sem-graça. Mas a vida é assim. Repleta de coisas sem-graça. Sem cor. Sem grandes reviravoltas. Todos os dias isso acontece.

Muitas vezes, são justamente esses capítulos tediosos que reaparecem na memória. Quando você pensa no que você teria feito de diferente. Quando imagina o que tornaria aquele momento um post de Facebook memorável e colocaria as fotos em um álbum chamado "A vida é tão boa!!!".

Depois da sessão nostalgia, continuei bebendo minha cerveja no quiosque. Uma meia hora depois, meus amigos e minha namorada desceram do apartamento para me acompanhar.

Foi quando me dei conta. Será que eu teria me tornado um putão-comedor depois daquela viagem? Difícil. Mais confiante? Talvez. Qual o rumo que a minha vida teria tomado? O ponto é que estava satisfeito com tudo.

No fim, o mais interessante dessa história é contar que fiquei no mesmo quarto e mesma cama da pessoa que eu gostava. E não fiz nada. Slowpoke!

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Tale Spin

No meio de uma das quadras de basquete, lá no Parque do Ibirapuera, um grupo de jogadores esquece do jogo que tinha planejado e acompanha boquiaberto uma cena inusitada.

Próximo ao centro da segunda quadra, um homem de aproximadamente 25 anos está de braços abertos rodando freneticamente. Provavelmente é destro, porque a perna direita faz a maior parte do esforço. A esquerda parece funcionar mais como apoio ou eixo do movimento. De vez em quando, as duas pernas se mexem, parecendo uma mini-corrida em um minúsculo círculo imaginário no chão.

Abaixo de umas das tabelas, outro cara também jovem bate a cabeça no poste de metal repetidas vezes.

CLANG!

CLANG!

CLANG!

— Idiota! — sussurrava a cada cabeçada.

Após alguns minutos de pura contemplação, olhos arregalados e incompreensão, um dos jogadores resolveu perguntar para o "cabeceador" o que estava acontecendo.

Ele responde:

— Claro! Eu explico. Estão com tempo?

Tudo tinha começado no fim da semana passada. Na sexta à tarde.


As coisas estavam tranquilas depois do almoço.

O departamento discutia sobre as declarações da Rachel Sherazade e o adolescente que fora amarrado no poste. Alguns se exaltavam. Diziam: "daqui do ar-condicionado é fácil julgar as escolhas do menino!". Outros rebatiam: "Tem gente que é ruim mesmo. Não há condições sociais boas ou ruins que mudem a índole de uma pessoa!".

Era mais uma tarde ociosa para turbinar as proporções de algum fato inicialmente insignificante para as vidas deles. Um ibope que faltava para Rachel. Uma tentativa inútil para que seus editoriais não pareçam um piti ranhento-birrento.

Até que surgiu outro assunto: a professora da PUC que postou a foto de um homem vestindo regata e bermuda no aeroporto. Novo debate. Corta para o break! Já voltamos! Conhece a nova Tecpix?

Quando já faziam a associação da professora com os justiceiros que prenderam o menor no poste, Bernardo teve sua epifania.

Bernardo é o primeiro personagem de destaque nesta história. O excêntrico jovem que rodava na quadra de basquete do Ibira.

Ele pensou: "o cara da regata nem percebeu que estava sendo fotografado. A única pessoa que estaria sofrendo com o assunto é a própria professora.".

Todos em volta dele continuaram discutindo, mas era como se estivessem em um longo silêncio. Bernardo continuou refletindo: "o cara de regata estava cagando para toda a situação. Se a foto não tivesse viralizado tanto, ele nem saberia que a letrada professora com abstinência de glamour tinha feito chacota.".

E prosseguiu: "ele só queria ficar confortável. Conseguiu. Agora, se quiser, ainda fatura uma grana em algum processo sobre a mulher. Mas nem é esse o ponto. Ele estava no aeroporto como se fosse uma criança. Só preocupado com o próprio bem-estar. Não estava interferindo na vida alheia. É isso! Veja como ele está desencanado. Preciso ser mais como na minha infância!".

Até que disse em voz alta:

— Começo esta semana!

A discussão acaba. Todos olham para Bernardo, meio sem compreender, e voltam a trabalhar normalmente. Já era hora. Os outros colegas do departamento não estavam gostando do volume e exaltação da conversa.

Na cabeça de Bernardo, tudo estava claro. Era uma nova filosofia de vida.

Quais são as melhores características do nosso comportamento infantil? Sinceridade, autenticidade, alegria. Energia? Disposição? Talvez.

Contou a novidade para seu melhor amigo Paulo, conhecido até aqui simplesmente como o "cabeceador". Este, sabendo como funcionava a cabeça obstinada de Bernardo, fez um facepalm mental e já se preparou para as várias encrencas que estariam por vir.

Nos primeiros dias, Bernardo ficou sincero demais. Sem papas na língua.

Seu chefe chamou:

— Bernardo! Preciso do relatório de orçamento de material pronto às 17 horas.

— Bom, eu tive que refazer a planilha de horários de entrega nas filiais do país inteiro. Só consigo cumprir esse prazo se eu cagar meu próprio avatar de merda e arranjar um computador para ele fazer o serviço. O que acha? Pode me fornecer essas condições de serviço? — respondeu de bate-pronto.

— Strike um, Bernardo! — gritou o chefe, puto.

— Cara, o que você está fazendo? — perguntou um colega de Bernardo.

— Sendo espontâneo! — falou Bernardo — Strike um? Por um acaso isso é uma ameaça?

Levantou-se e foi até a sala do chefe. Lá de dentro, dava para ouvir algumas frases. Todos fizeram silêncio para acompanhar o diálogo.

— Você enlouqueceu? Esqueceu onde está? O que você pensa que está fazendo? Bernardo! Essa caneca foi meu filho que fez pra mim no Dia dos Pais! Pare!

— Estou fazendo meu avatar! Dá licença!

— Segurança!

Em torno de 7 seguranças carregaram um agitado Bernardo até a saída da empresa. Ele se debatia tanto que parecia o rabo de uma lagartixa que acabara de ser cortado. Ainda estava com as calças e cueca abaixadas até a altura do joelho.

Deitado na calçada, Bernardo levantou as calças e se sentou na guia. Após respirar algumas vezes, ligou para Paulo e contou o ocorrido.

— Você é pirado mesmo, cara. Vamos tomar umas brejas e conversar sobre isso.

— Beleza.

Paulo chegou de carro, pediu para Bernardo entrar e seguiram para o primeiro bar que encontraram em Moema. Um boteco de frente para a praça da igreja.

Bernardo não quis entrar.

— Espera! Não posso beber! Crianças não bebem!

Paulo respirou fundo e esfregou os olhos com as palmas das mãos.

— Tá. O que você quer fazer? Como as crianças fazem para afogar as mágoas?

— Tomar uma overdose de Yakult ou Chambinho não vai adiantar... Já sei! Vamos para o Parque do Ibirapuera.

Chegando lá, deixaram o carro em uma travessa da IV Centenário e a foram direto para as quadras de basquete.

Paulo pressentia que nada de bom poderia vir daquilo tudo, mas foi compreensivo ao máximo com seu amigo de infância que acabara de ser demitido. "Vamos ver aonde isso vai dar..." — pensou.

Foi quando Bernardo começou a girar no centro da quadra e gritava para explicar:

— É o único jeito de ficar tonto sem beber, fumar ou cheirar nada! Eu fazia isso quando tinha quatro anos e achava o máximo! Tenta também!

Paulo não acreditava no que via.

— Ber... Bernardo... Para com isso... Pa... Para! O que caralhas você está fazendo?

Com vergonha alheia, ainda pediu mais vezes para Bernardo parar. Em vão. Alguns minutos depois, o senso de responsabilidade com o amigo enlouquecido brigava com a vontade de ir embora. O conflito e o desespero fizeram Paulo bater com sua testa no poste da tabela de basquete.

A ambulância chegou meia hora mais tarde.