Afrânio é um senhor que vive na zona norte de São Paulo.
Apaixonado por carros, é daquelas pessoas que todo mundo procura quando surge alguma dúvida.
Perguntam sobre o melhor combustível, qual a frequência que deveriam alternar entre álcool e gasolina, se há problemas em ligar o carro com o ar-condicionado ligado, entre outras coisas.
Alguns anos antes de se aposentar em uma grande indústria farmacêutica, Afrânio começou a investir em um hobby: reuniu uma série de carros antigos que daria inveja a qualquer colecionador.
Um Impala 67, um Mustang 66 e seu favorito: Galaxie Standard 1970. Originais. Todo cuidado e manutenção com os carros clássicos fez com que Afrânio adquirisse um conhecimento impressionante sobre esse universo automobilístico.
Certa vez, seu sobrinho pegou o Mustang emprestado às escondidas. Na ocasião, Afrânio estava de férias, passeando pela Rota 66 com um Cadillac Eldorado 1968 alugado.
Após uma noitada bêbado com o Mustang, o sobrinho de Afrânio danificou o câmbio do carro. Felizmente, com mais 20 dias até o retorno do tio, o jovem imbecil conseguiu um conserto às pressas no mecânico do bairro.
Ao que parecia, o serviço tinha sido bom. Bom até Afrânio resolver passear com o Mustang.
Logo nos primeiros quilômetros, percebeu vários barulhos inaudíveis para qualquer outra pessoa. Uma parte do painel que emitia pequenas vibrações, o volante que rangia ao tomar as direções, alguns graus de desalinhamento dos eixos dianteiros e uma mancha redonda meio apagada no painel, provavelmente de uma lata gelada.
Tudo isso fora o câmbio, que estava muito difícil de manusear. Travava e fazia barulhos irritantes.
Emputecido, Afrânio encontrou seu sobrinho e eles discutiram. Foi uma bronca de proporções épicas. "Irresponsável" seria um elogio dentro de todo o contexto de ofensas utilizadas na discussão.
Durante a briga, Afrânio estava tão alterado que nem sentiu sua mão soltando a chave do carro no chão. Tampouco, que não conseguia falar argumentos claros.
Quando a boca já estava torta para a direita, seu sobrinho foi o primeiro a se dar conta. Apenas alguns segundos para Afrânio cair no chão, ainda sem perceber que tivera um AVC.
Ele sobreviveu com algumas sequelas.
Essa história deixa algumas dúvidas.
Por que era tão fácil para o Afrânio perceber o que há de errado com o carro, mas tão imperceptível qualquer mudança no próprio corpo?
Perceber que a luz do óleo no painel está acesa, mas passar batido que está dormindo mal por pura ansiedade.
Perceber a queda de rendimento de um motor, mas não se dar conta que o stress no trabalho o faz brigar por qualquer merdinha que acontece.
Saber e usar o melhor combustível para o carro, mas continuar comendo junk food rápido sem sair da mesa no trabalho.
Será que já não se trata mais do Afrânio? Que poucos realmente percebem o que está acontecendo na própria vida?
Outra coisa. Por que caralhas usei o nome "Afrânio"?