sexta-feira, 4 de abril de 2014

Dia de Fúria?

A ansiedade tinha começado no dia anterior. O tempo demorava para passar.

Ao longo do dia, tinha bebido cinco copos de café na máquina Nescafe do corredor. Ainda tinha uma gambiarra: doses duplas do "café curto". Dose dupla de cafeína.

Tudo isso somado ao fato de que tinha baixado o último episódio de sua série favorita.

Olhava de 15 em 15 minutos no relógio. Enquanto enrolava para fazer suas atividades, ameaçava abrir o arquivo que seu amigo tinha baixado. Estava tudo lá na pasta. MP4 e legendas em português. Assistiu à primeira cena. Parou. Queria ver com calma em casa. Fechou tudo e subiu para seu Dropbox.

Teria que aguentar mais algumas horas até o fim do expediente.

Deu tudo certo.

Chegou em casa em um bom horário. Precisava terminar algumas coisas antes de assistir. Queria deixar tudo preparado para que não tivesse qualquer interrupção. Esquentou a água do Cup Noodles, jantou, lavou a louça, tomou o resto da Coca 2l direto no gargalo e arrumou a bagunça do seu roommate na sala.

Em paralelo, deixou o notebook ligando para que, logo que acabasse as tarefas, sentaria na cama só de cueca para saciar a curiosidade do episódio final.

No fim, o encerramento da série foi como ele esperava. Emocionante, engraçado e intrigante. Mal dormiu durante a noite. Claro que o problema pode ter sido a quantidade de cafeína que ingeriu pouco antes.

Mas o foco desta história é outro.

No dia seguinte, estava no ônibus. A ironia da insônia é o momento que a sonolência chega de verdade. Entre 2h e 3h parecia estar completamente acordado, mas quando o despertador toca às 7h, parece que você está tentando levantar de uma cama feita de Chandelle movediço.

Com aquele ânimo, fechava os olhos e tentava dormir sentado no banco. Ainda estava afobado e ansioso. Não conseguiu dar nem mesmo uma pescada. Aproveitou para resolver algumas coisas pelo telefone.

Era um dia bem quente de outono e o trânsito estava engarrafado. O sol e o calor já começavam a incomodar. Isso não era nada perto da ligação que caía o tempo todo. Ele queria que enviassem uma nova via de um boleto que tinha perdido.

O sinal da Vivo sumiu cinco vezes seguidas. Uma enquanto ouvia as opções:

— Para atendimento, tecle 1. Para nova via de boleto, tecle 2. Para sugestões, reclamações, tecle... PUF!

Bufou. Tentou a segunda. Rede ocupada.

Terceira. Antes de ouvir as instruções, teclou 2. Começou a chamar. Caiu a linha novamente. Sua pele começou a ficar avermelhada.

Quarta vez. Teclou 2. Chamando... Chamando... Tuuuuu... Tuuuuu... Tuuuuu... Cruzou os dedos. Descruzou-os. Fez figa. Caiu de novo.

Quinta vez. Já apertou o 2 com mais força que o normal. Ficou até a marca redonda do dedo na tela touchscreen. Estava quase desistindo. Atenderam! Viva!

— Leilane, bom dia! Como posso ajudá-lo?  — a atendente respondeu.

— Eu perdi meu boleto e gostaria de uma nova via.

Passou os dados que foram solicitados. Nome completo e CPF.

— Ok! Estarei encaminhando a nova via do boleto via e-mail. Pode me confirmar, por favor?

—É M, P, da silva, arroba... PUF! — caiu a ligação de novo.

Tirou o telefone da orelha e, com o aparelho ainda apertado em sua palma, a mão direita começou a tremer. Mordeu tão forte o lábio que chegou a sangrar. Já tinha arrancado pelinha uns dias antes.

Olhou para os lados e não resistiu: arremessou o telefone com toda força pela janela.

Dizem que um acidente nunca é provocado por um fator isolado, e sim por um conjunto de incidentes que acontecem ao mesmo tempo.

Nesse caso, foi um surto de fúria coletiva. Outra passageira no ônibus discutia com o namorado em alto volume. Constrangedor para alguns e irritante para outros que se viam atrasados a seus compromissos. O engarrafamento continuava.

Assim que o celular foi arremessado pela janela, a explosão se contagiou pelo ônibus.

— CALA A BOCA! — um homem gritou para a mulher que brigava com o namorado.

— VAI SE FODER! CUIDA DA TUA VIDA! — ela respondeu.

— VAMO PARAR COM ESSA PUTARIA AÍ! — esbravejou o motorista, emputecido com o trânsito parado — ANDA! ANDA, CARALHO! — buzinou aos berros.

Os carros da frente andaram um pouco, mas nem deu tempo para o micro-ônibus andar. Um grupo de 15 pessoas, começou a balançar o veículo. Ele se solidarizaram com a mulher que foi atingida na testa pelo celular e estava tonta.

Cada um deles também tinha seus motivos para ficar tão insano de raiva. O Itaquerão incompleto, o seguro do carro, porrada do dedinho do pé na mesa da sala, uma mancha de café no meio da camisa branca, cheque especial, pisada na poça d'água com sapato de pano...

Enquanto o micro-ônibus balançava de um lado para outro como o barco viking do extinto Playcenter, os passageiros trocavam socos. Uns tentando escapar pela porta, outros direcionados à mulher do celular, que retribuía sem parar de xingar o namorado:

— ELES ESTÃO ME BATENDO! NÃO ESTÁ OUVINDO, SEU IDIOTA?

Os 15 da rua conseguiram finalmente virar o micro-ônibus. Apenas alguns passageiros ficaram feridos, mas mesmo assim, quebraram os vidros e saíram do veículo. Saltaram na rua e gritaram.

Foram em direção de todos os carros em volta com chutes e voadoras nos vidros. Em uma das esquinas, um homem segurava outro pelo pescoço e batia com sua cabeça no vidro traseiro de um Uno estacionado.

Na confusão, voavam extintores, caixas de aspargos do Ceasa, fardos de feno, embalagens de serpentinas, travesseiros, próteses de silicone, coturnos, árvores de natal, cintos, tilápias mortas, perucas ruivas e globos terrestres.

O caos se instalou naquele ponto da cidade e foi só aumentando. Em tempo recorde, a epidemia de fúria já tinha tomado três bairros. Prédios incendiados, vidraças estilhaçadas e alguns corpos nocauteados nas calçadas.

A polícia militar foi acionada. Todos pareciam bem nervosos também. Não foram orientados a dialogar e já chegaram disparando bombas de fumaça.

A população ignorou e avançou como um bando de formigas procurando alimento. Atravessaram a tóxica cortina branca e toda a tropa da PM foi atropelada. Mal tiveram uma chance de reagir, se defender ou até mesmo de pedir reforço.


Insatisfeitos com mais essa roubada, os policiais jogaram os escudos no chão e se juntaram ao Exército dos Putos, nome criado por Datena para definir o grupo que aumentava e caminhava unido sem direção.

Da mesma maneira que começou, o frenesi acabou. Uns se deram conta que tinham que fazer o jantar. Outros, ainda precisavam ir ao trabalho. O segurança da rua encontrou um amigo e ambos sorriram ao lembrar da vitória por 2 a 0 do tricolor. Os integrantes foram pouco a pouco se desgarrando por completo.

Mesmo assim, as autoridades passaram a temer que outro evento como esse ocorresse: o dia em que todo mundo ficou puto ao mesmo tempo.

No Guinness Book, o recorde foi registrado como "a maior quantidade de pessoas enfurecidas em uma caminhada de 50 km: 643 mil pessoas".

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