terça-feira, 23 de abril de 2013

Lei da atração?

Pouco depois do almoço, lá para umas 14h, Haroldo caminhava calmamente pela rua até a empresa onde trabalhava. Ele e seu colega conversavam. Era quarta-feira, dia de feijoada. Ambos estavam se sentindo meio cheios. Já previam que não iam trabalhar direito na parte da tarde.

Durante o caminho de volta, havia uma lotérica. Para dar uma enrolada maior até o fim da hora do almoço, resolveram fazer um jogo da Mega-Sena. Maior prêmio da história: 300 milhões de reais.

Marcaram seus números, escreveram o nome e CPF no comprovante e voltaram para o escritório.

"O que você faria se ganhasse na loteria" é o melhor assunto para combater silêncios constrangedores em situações sociais. Por exemplo em bares, restaurantes e/ou festas em que as pessoas ainda não estão bêbadas o suficiente para o assunto fluir melhor. É um tema coringa, assim como "sexo com celebridades", "desventuras com telemarketing" e "histórias de bêbado". Todo mundo já pensou ou viveu algo nesse contexto que vale a pena ser contado.

Haroldo e seu colega sentaram em suas mesas, com planos e sonhos na cabeça. — Imagina ganhar sozinho? — pensavam.

Alguns visualizam o próprio pedido de demissão. Cinematográfico. Se não vai com a cara do chefe, fica mais espalhafatoso ainda. Ir na sala dele, gritar a plenos pulmões "CHUUUUUPA!", tirar a calça esfregar a bunda na mesa de vidro "NHEC! NHEC! NHEC!", deixar um montinho de cocô embaixo do mouse da pessoa. As possibilidades são infinitas.

Não era o caso de Haroldo. Em seus planos, apenas a vontade de gastar tudo e morrer feliz após fazer as atividades que gostaria. Não queria ser rico, aplicar o dinheiro, tampouco ter uma aposentadoria. Enquanto alguns planejam separar um percentual do prêmio para "torrar", Haroldo simplesmente "torraria" tudo. Um pouco em chocolates, outro tanto em viagens, experimentaria todos os tipos de comida e cervejas.

Mas a vida continua. Ambos dobraram o bilhete e o deixaram dentro de suas carteiras.

É impossível determinar a razão, mas na vida de Haroldo, nada que ele esperava acontecia. Às vezes, ocorria até o contrário. Ele até dizia que tinha poderes climáticos. Quando separava um casaco, fazia calor. Quando lavava o carro, chovia.

Em qualquer outra situação, esse fenômeno também aparecia. Sempre que ficava preocupado com o trânsito e atrasos, o tráfego fluía como um bloco de manteiga num toboágua. E quando ficava tranquilo em relação a algum relatório que fazia no trabalho, dava merda.

Haroldo começou a acreditar nesses poderes de contrariar probabilidades quando foi conferir os números da Mega-Sena. E não é que o filho da puta tinha ganhado? Sozinho.

A verdade é que ninguém sabe como reagiria à notícia. Tampouco na hora em que o dinheiro estivesse na conta. Após algum tempo de choque, finalmente Haroldo resolveu agir.

— TORRAR! — berrou ao ver o resultado do sorteio.

E foi embora. Nem se deu ao trabalho de pedir demissão no trabalho. Simplesmente sumiu.

Retirou o prêmio, mas não sabia onde guardar o dinheiro. Por isso, abriu uma poupança e fez o grande depósito. A gerente do banco quase teve orgasmos múltiplos na mesa.

Depois, foi até a Kopenhagen e comprou um ovo de páscoa de 10 kg. O da vitrine mesmo. Sempre teve curiosidade para comer aquilo. Em casa, devorou aproximadamente 400 g, embalou e guardou no armário. Chega de chocolate.

E agora? O que fazer? Passou a ficar ansioso.

Fez uma rápida pesquisa no Google, descobriu um pet shop onde poderia comprar um beija-flor, separou uns cinco mil reais em dinheiro e foi até o metrô.

Após passar pelos bloqueios, dirigiu-se até porta de um dos vagões e deu notas de 100 reais para que os passageiros não entrassem nesse que tinha escolhido. Os usuários, sem entender muito, foram para outras partes do trem.

Haroldo entrou e fez mais uma manutenção para que ninguém adentrasse o vagão. Assim que as portas se fecharam e o trem começou a andar, Haroldo soltou o pássaro. Finalmente poderia tirar a dúvida se um beija-flor, que consegue se manter imóvel no ar durante o voo, sofreria com a inércia do trem. Era algo que se perguntava todos os dias.

Contrariando suas expectativas, o pássaro voou um pouco e logo pousou em um banco. É. Dinheiro não serviria para persuadir a ave. Logo ao parar na próxima estação, desistiu da experiência e levou o beija-flor consigo para casa.

— Você vai se chamar Agenor! — disse para o novo amigo.

Haroldo dedicou o resto do dia para satisfazer mais de suas curiosidades. Depois de montar o cantinho do Agenor em casa, foi até a Avenida 23 de Maio para realizar um sonho de infância: descer as quatro faixas do Monumento das Ondas de Tomie Ohtake de bicicleta.

Foi mais sem graça do que imaginava. Nem precisou subornar algum guarda. Tinha até reservado dinheiro para isso.

Dias depois, contratou uma agência de eventos. Resolveu organizar um festival: Rock in Harold. Alugou o Vila Country e chamou o Gustavo Lima, Restart, Sandy e Luan Santana.. Acertou os cachês e cobrou ingressos do público.

A casa lotou. Durante o show do Gustavo Lima, Haroldo ficou no camarote com uma potente caneta laser. Entre uma música e outra, apontava com o laser no rosto e olhos do cantor, que se atrapalhou, mas achou que fazia parte dos holofotes.

Na apresentação do Restart, Haroldo usou um mini-canhão de ar para disparar fragmentos de papel higiênico molhado nos adolescentes. Em poucas músicas do set, o baixo do Pe Lanza ficou cheio de bolinhas grudadas.

Quando a Sandy começou a cantar, Haroldo foi até a mesa de som e experimentou uma série de efeitos aleatórios na voz dela. Ecos, voz de robô, sintetizadores de pato. Depois, cortou o volume do microfone e substituiu o áudio com sua imitação do Sílvio Santos, interpretando as mesmas músicas que a banda apresentava.

— Eu faço o que eu quero nessa porra! — gritou.

Com tanto desrespeito, Luan Santana pensou em dispensar o cachê. Mas suas fãs gritavam tanto, que voltou atrás. No momento em que subiu no palco e abriu a boca para cumprimentar o público, Haroldo desligou a chave geral do Vila Country e derreteu os controles com um maçarico, aos risos.

Confusão. Sinceramente, não sei como Haroldo escapou dessa história toda. A polêmica saiu na Folha, Estadão, UOL, Terra e etc. O burburinho durou um tempo e, como várias outras notícias, foi esquecido.

Haroldo percebeu que estava cometendo loucuras cada vez maiores com o prêmio. E o dinheiro ainda estava rendendo na poupança, o que aumentou sua fortuna.

Foi então que teve uma ideia brilhante. Virou para Agenor e falou:

— Vou gastar tudo de uma vez!

— Piu? — respondeu Agenor.

Haroldo resgatou todo o dinheiro de sua poupança e sacou seu novo e astronômico limite de cheque especial do banco.

Comprou uma rede de televisão, cinco Ferraris, dois Porsches, um Monster Truck e o Canindé.

Cumprindo um cronograma elaborado, imprimiu, foi ao centro de São Paulo e distribuiu 20 mil ingressos das arquibancadas.

Gastou todo o dinheiro em um excêntrico programa de seu novo canal.

No primeiro dia, a Harold TV transmitiu 12 horas ininterruptas de um Monster Truck destruindo carros de luxo no gramado do estádio. O próprio Haroldo conduzia o gigantesco veículo com Agenor em seu ombro.

Quando destruiu a última 612 Scaglietti, Haroldo suspirou aliviado.

— Finalmente, estou livre do dinheiro, Agenor!

— Piu?

E foi um grande engano. A rede e o programa bateram recordes mundiais de audiência e acabaram comprados pela ABC.

Hoje, com a antiga fortuna triplicada, Haroldo e Agenor vivem em uma ilha particular no sul do Pacífico.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Catota

Se olhar com atenção, dá para perceber uma série de tiques e manias das pessoas à sua volta. Alguns são bem discretos, outros exagerados.

Lindolfo tinha muito medo que seu nariz estivesse sujo. Odiava pensar que alguma sujeirinha seca ou fragmentos de ranho solificados ficassem pendurados e à vista em suas narinas.

Claro que sua cabeça sempre exagerava nas proporções do fato. Em seu devaneio, algo verde e disforme estaria preso nos pelos do nariz como um macaco bêbado de frutas fermentadas enroscado em cipós. Algo gigantesco balançando para lá e para cá prestes a cair em sua camiseta.

Em função dessa neurose, Lindolfo constantemente conferia se seu nariz estava sujo. De tempos em tempos, levantava a mão direita e passava o dedo indicador nas bordas das narinas. Tentava ser discreto. Não queria que as pessoas pensassem que estava enfiando o dedo lá dentro. Isso seria falta de educação. E realmente era só uma conferência superficial.

Se alguém reparasse, ele fingia que estava pensativo. Mantinha a mão tampando a região da boca e olhava para o horizonte vazio. Às vezes, até franzia a testa. Levantava uma das sobrancelhas. Só para dar a entender que estava imerso em profundos questionamentos. De repente, para voltar à realidade, Lindolfo simulava uma rápida e elegante coçadinha na ponta do nariz.

Nosso preocupado amigo estava cultivando um bigode. Resolveu inovar no visual. O problema é que quando os pelos começaram a ficar mais longos e desajeitados, faziam um pouco de cócegas e causavam coceira. Resultado? Amplificou sua sensação de nariz sujo, fazendo com que Lindolfo conferisse a limpeza ainda mais vezes durante o dia.

Andava sempre com um pacote de lenços no bolso. Não queria passar de novo pela situação mais constrangedora que viveu na faculdade. Era inverno e conversava com alguns amigos no intervalo de duas aulas. Como estava um pouco resfriado, precisou espirrar. Foi incontrolável. Chegou a por a mão no rosto, mas não adiantou. O muco verde-esbranquiçado escorria no meio de seus dedos.

Ficou tão desesperado que saiu correndo da sala de aula, largando a conversa com seus amigos. Que vergonha! A minazinha que ocasionalmente xavecava também estava no grupo.

Obviamente, seus colegas não ligaram. Continuaram o assunto normalmente. O que realmente chamou a atenção foi a velocidade de Lindolfo, que se levantou e correu para o banheiro de maneira súbita.

— Lindolfo, espirro é normal! Você está resfriado. Eu pensei que você ia correr, pegar um ônibus e fugir para casa de tão rápido que você saiu! — disse a minazinha.

Os anos passaram. Perdeu o contato com a garota. O pacote de Kleenex foi incorporado ao bolso, e de lá, nunca mais saiu. Mesmo no verão, ou quando a rinite atacava, ele era bem aproveitado e renovado de tempos em tempos.

Tudo seguia na normalidade. Essa nóia já fazia parte do dia a dia. Deixou de incomodar e não atrapalhava suas atividades. Era só ter qualquer sensação no nariz, de um vento a um toque dos bigodes, que rapidamente Lindolfo conferia a limpeza.

Ficar reparando tão incansavelmente no próprio nariz fez com que Lindolfo também fosse muito atento, observador e detalhista nas narinas dos outros.

Percebia a metros de distância se alguém estava com o nariz escorrendo ou com alguma melequinha pendurada. Isso não se aplicava apenas ao universo nasal. Encontrava nas pessoas remelas nos olhos durante a manhã, fragmentos de rúcula, alface ou feijão nos dentes depois do almoço e ocasionalmente micro farelos de pão nas barbas e camisetas.

Flocos de caspa eram como holofotes, show de laser e fogos de artifício fosforescentes saindo diretamente do couro cabeludo de seus colegas de trabalho.

Essa percepção super aguçada a secreções discrepantes no rosto dos outros também não incomodava. Até o dia em que fez uma reunião com o Vice Presidente Regional da empresa em que trabalhava.

Logo que a reunião começou, do outro lado da enorme mesa da sala, Lindolfo conseguiu enxergar uma bolinha branca de baba que ficava próxima ao canto da boca do VP. No lábio inferior. Era arredondada e tinha poucas micro bolhinhas de espuma.

Lindolfo desfocou. Não prestava mais atenção a qualquer assunto tratado naquele momento. A bolinha de baba estacionada parecia um iglu. Passou a imaginar esquimós microscópicos vivendo ali. Pequenas pessoas caçando restos de comida que sobravam abaixo da língua ou nos dentes do executivo.

A cada vez que o VP fechava a boca enquanto falava sobre algum tópico, formava-se um fio de cuspe que, na visão de Lindolfo, subia, descolava do lábio superior e descia em câmera lenta até voltar à forma original.

Começou a ficar tenso com aquela imagem. O vice presidente passava a língua na boca, tirava a gota de cuspe, mas sempre em seguida, ela voltava. Às vezes maior. Às vezes menor. Mas sempre voltava.

Lindolfo queria levantar, sacar uma folha quádrupla de lenço e limpar aquilo. Suou frio para resistir a essa vontade. Foi difícil. Desviava o olhar, desenhava um lago com montanhas em seu caderno de anotações, mas toda vez que parava, a primeira coisa que lhe chamava o olhar era a meia esfera de saliva na boca do cara.

Os minutos se passaram e Lindolfo continuou focado no movimento do igluzinho de cuspe. Ele finalmente aceitou que não prestaria mais atenção na reunião, até que ouviu VP falar:

— Concorda, Sr. Lindolfo?

— Er... É... Ok! Concordo!

Todos aplaudiram. Lindolfo acabara de ser transferido para a filial da empresa em Roraima.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Desconvicto

Dizem que o Facebook é igual geladeira. Você sabe que não tem nada, mas fica olhando de cinco em cinco minutos.

Para Zé Paulo era ainda pior. É como se abrisse a geladeira e encontrasse vários potes de requeijão cheios de bolor.

O cara levava o Facebook a sério demais.

Há alguns meses, Zé Paulo estava desempregado. Isso fez com que ele ficasse mais tempo conectado em seu computador. Procurando emprego, acessando o Globo Bizarro e reativando contatos.

Na rotina de seu desemprego, também passava algumas horas sem inspiração olhando para uma postagem em branco de seu blog. Não tinha assunto para escrever. Só naquele ano, tinha postado quatro manuais de boas maneiras nas redes sociais.

Faltava identidade. Queria se diferenciar dos outros, mas não sabia como.

Seu blog até tinha bons acessos, mas não tanto quanto gostaria. Isso o frustrava demais. Zé Paulo queria ditar tendências. Queria dizer para o mundo o quanto ele poderia ser cool. Queria dar palestras no YouPix, ser chamado para podcasts famosos e tirar fotos como celebridade nerd na Campus Party.

Mas lá estava ele. Com uma camiseta velha e furada da Camiseteria, que usava como pijama, uma bermuda com elástico frouxo, suja de café e manteiga. Procurava por uma vaga de analista de mídias sociais e, em paralelo, acompanhava o feed de seus 1.612 amigos no Facebook.

Isso o estava deixando bem puto.

Pensava: "nenhum desses filhos da puta leu meus manuais de etiqueta?".

A primeira foto de sua timeline era de um grupo de sete filhotinhos. Uma amiga da época da faculdade tinha compartilhado. A legenda dizia que eles tinham sido abandonados perto da Avenida João Dias. Estavam passando fome e um deles estava bem magrinho. Supostamente.

Ao ver a foto, Zé Paulo resmungou em voz baixa:

— Caralho! Essa puta tem um Shih-Tzu de 1000 reais no apartamento dela e vem querer pagar uma de defensora dos animais? Por que será que ela mesmo não acolhe os bichinhos?

De qualquer maneira, curtiu a foto e marcou alguns amigos que poderiam ajudar. Continuou a rolagem na timeline.

A próxima idiotice foi uma foto tirando sarro da última goleada sofrida pelo Palmeiras. Ficou puto novamente.

Pensou: "É um babaca... Esse é aquele mesmo imbecil que me empurrou quando comemorei o gol que o time dele tomou. É típico. Quem defende que a zoação é comum e saudável no futebol é o primeiro a se inflamar e arrumar briga.".

Engolindo mais um sapo de stress, clicou no status e cancelou a assinatura. "Não estou com saco para essa merda!" — suspirou.

Mais alguns posts abaixo, questionou se os idiotas resolveram aparecer todos juntos ou se era simplesmente o fato de que estava prestando mais atenção no Facebook.

Eis que, um post abaixo do outro, estava uma foto pedindo para cortarem o benefício do 14º dos deputados. Era só chegar a um milhão de compartilhamentos.

Pouco depois, viu um inflamado amigo dando seu apoio à Coreia do Norte e um texto super formal reivindicando ao Facebook os direitos sobre as próprias postagens, fotos e conteúdos publicados.

— Odeio quem não pensa antes de fazer as coisas... Como são idiotas! — falou sozinho.

Mas a próxima carga foi demais. Uma colega de trabalho da última agência em que estava publicou uma notícia de que Suzane Richthofen seria responsável pela presidência da Comissão de Seguridade Social e Família. Lá estava o link do Sensacionalista e o comentário "Que absurdo! Aonde esse país vai parar!".

Zé Paulo ficou em silêncio e começou a suar. Claramente, algo não estava bem.

Até que veio o post de um cara falando: "Big Brother? Funk? Novela? É Brasil! Vai si alienando assim mesmo. Mais uma vez a cultura do pão e circo. É por isso que estamos nessa merda!".

— O maluco quer falar de cultura, ignorância e massificação, mas nem sabe escrever direito! POORRA! Fora que ele quer mudar o mundo pelo Facebook. Caralho. Mas calma aí, se aqui está a concentração dos esforços de todos, é aqui que as coisas vão começar a acontecer? Abaixo-assinados online, piquetes online, pensadores online, mensagens libertadoras online. Mas é tudo tão fútil. O que eu faço?

Os pensamentos, dúvidas e indagações invadiram sua cabeça como um trem-bala pilotado por um hooligan bêbado.

Palpitações, suor excessivo, tremedeira, falta de ar e tontura. Zé Paulo teve um ataque de pânico.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Mono

Helter chegou em casa por volta das 23h. Morava no 7º andar e tinha que ser muito discreto ao entrar no apartamento, pois sua vizinha do andar de baixo era um pé no saco.

Pelas regras do condomínio, após às 22h começava a valer a lei do silêncio. Esse era o aval para a mulher começar a reclamar, ligar na portaria e até bater com um cabo de vassoura no teto. Às vezes, a ranzinza batia tão forte que Helter sentia uma pequena vibração na sola dos pés.

Quando ela começava a bater, Helter resmungava:

— Puta merda! Eu ejaculei na cruz mesmo... O pior é que a puta nem é velha. Deve ser mal-comida... Ou mesmo não-comida!

Dono de uma vasta monocelha desde os 16 anos, Helter é filho de um casal fã dos Beatles. Ele e seu irmão Skelter não chegaram a sofrer bullying na escola, mas não eram dos mais populares.

Ambos eram meio playboyzinhos, e talvez por isso, os outros colegas não gostavam muito deles. Na hora do recreio, um era o único amigo do outro, mesmo estudando em salas diferentes. Não eram pessoas muito agradáveis.

Quando não estavam na escola, estudavam inglês intensivo na Wizard, por isso, eram mais fluentes que o resto dos alunos. Aí, não conversavam em português ao falar mal e rir dos outros estudantes. Escrotinhos.

Hoje, com 23 anos, Helter é um coxinha moderno. Torcedor do Corinthians, vangloria-se como "maloqueiro e sofredor", apesar de morar em um luxuoso condomínio no Alto de Pinheiros. Gosta das baladas do Itaim porque a Vila Madalena é "alternativa" demais.

É viciado em biscoito de polvilho e adora licor de Amarula. Está quase completando uma parede de seu quarto com rótulos da bebida colados.

A-M-A The Killers. Tuitou esses dias que eles são monstros sagrados do Rock n' Roll. Começou a ouvir Fear of the Dark para agradar o chefe, que é fã do Iron Maiden. Vibra quando as bandas de pop-rock da Vila Olímpia tocam sertanejo universitário.

Sofria com um trauma. Há alguns anos, teve uma briga feia com Skelter. Tudo por causa do controle remoto da TV. Um queria assistir ao "À prova de tudo" do Bear Grylls e o outro, "CQC". Ficaram realmente chateados. Mas no fundo, continuavam se amando.

Dormiam no mesmo quarto e, no meio da madrugada, Helter acordou com um estranho ardor no supercílio. Levantou-se da cama e, ainda meio atordoado, viu o corpo de Skelter ensanguentado e esquartejado na cama.

Sobraram apenas a cabeça, rosto com expressão de dor, e o tronco, com o braço esquerdo dilacerado. Uma das pernas estava no chão, ao lado da cabeceira da cama.

Até hoje, tem dúvidas do que viu. Nunca soube se seu cérebro aumentou a gravidade da cena. O caso continuou um mistério e sem solução.

O ponto é que, nessa mesma noite em que a vizinha mal-comida reclamou do barulho, Helter foi dormir puto. Bem puto. Só que o mesmo nível de emputecimento se transformou em pavor quando acordou de madrugada com uma dor conhecida.

Desnorteado, caminhou até o interruptor para acender as luzes, e quando seus olhos se adaptaram à claridade, ficou horrorizado novamente.

Ao lado de seu sapatênis, previamente separado para o casual Friday, estavam três ossos humanos: um crânio e dois fêmures.

— Hein? Como? De novo! Como assim? O que está havendo? — pensou, aflito.

Confuso, ainda não entendia tudo aquilo. Ficou surpreso com a intensidade da dor nos supercílios. Pareciam arder mais que uma ferida embebida em álcool.

Saiu de seu quarto e foi para a sala. Só para tomar um tiro de uma arma calibre 12 bem no meio da testa. Caiu morto na hora.

Era o marido da vizinha aos prantos. Tinha visto um par de sobrancelhas unificadas atacar, matar e devorar sua esposa, que dormia tranquilamente. Seguiu a criatura peluda pelas escadas até o andar de cima. Quando viu seu vizinho sair do quarto, sonolento, com o monstro no rosto, não pensou duas vezes. Atirou para matar.

A monocelha criara vida ao se alimentar de migalhas de biscoito de polvilho que Helter vivia comendo. A bizarra criatura agonizou por mais alguns momentos, rastejou por uns centímetros e finalmente morreu.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Bean Situation: sem freios.

Depois de se estabilizar no emprego, finalmente Alex conseguiu um apartamento para morar sozinho.

Fez todos os cálculos: aluguel, condomínio, conta de luz, gás e água. Com seu novo salário, daria para pagar tudo.

Estava de saco cheio de viver com sua mãe. Ultimamente, brigavam demais e esse é um típico caso em que a distância melhoraria a relação dos dois. Tudo seria uma maravilha: Alex culpava sua mãe por ser tão tímido.

Seus colegas de todos os lugares em que estudou e trabalhou o chamavam de Carpete. Por uma série de fatores.

Diziam que ele tinha sido criado pela avó a base de leite com pera e que jogava bolinhas de gude no carpete do apartamento. Sempre o classificavam como café com leite e, quando Alex ia a uma copa tomar um café expresso, perguntavam se a cafeína não era uma porta de entrada para drogas mais pesadas.

Mas a principal razão do apelido "Carpete" era a cor castanha clara de seu cabelo, além do corte curtinho, bem rente à cabeça.

As possibilidades de piadas e sarros eram quase infinitas.

Enfim chegou o dia e Alex Carpete se mudou para o novo apê. A decoração ficou do jeito que queria. Sofá, TV, Blu-ray player e sua coleção de DVD's do Cheers. Seu quarto era mais simples. Comprara um criado-mudo no Mercado Livre que ficava com a gaveta vazia. Em cima, deixava seus óculos e um livro.

Havia mais roupas penduradas em seu mancebo do que no guarda-roupas. Partia do princípio que calças jeans não sujavam em menos de três semanas.

Lavar louças era tranquilo e cozinhar era fácil. Muitas lasanhas e nuggets congelados para o jantar ao longo da semana. O almoço geralmente era nos restaurantes por quilo que ficavam perto de seu trabalho.

Das tarefas domésticas, a que mais odiava era lavar roupas, atividade que não fazia na casa de sua mãe. Por essa razão que desenvolveu a teoria das três semanas das calças jeans.

Passar camisas era tão horrível que passou a usar apenas camisetas polo. Tinha um shorts de pijamas para dormir que às vezes ficava o mês inteiro sem lavar. Blusas de frio? Ah! Essas nunca sujavam. Só precisava dar uma cheiradinha. Se estivesse com suor, pendurava no varal em qualquer oportunidade de sol e já estava tudo bem.

Alex vivia relaxado com todos esses fatos. Só que existia um fenômeno que lhe causava o pior dos pavores: freada na cueca.

Tomou o primeiro susto logo na estreia de sua área de serviço. Enquanto separava as roupas de baixo para lavar na máquina, se deparou com aquela cena. Uma faixa central, irregular e desbotada no meio do tecido branco.

— Ergh! Minha mãe lavava isso? — pensou com a cara toda contraída de nojo.

A partir daí, começou o que seria a primeira daquelas manias quase imutáveis de quem vive sozinho. Sempre preocupado com as freadas, Alex se policiava com qualquer ameaça de peidinho. Se a barriga fizesse qualquer barulho, já corria para o banheiro.

Agora, além de toda a vergonha que já sentia na maioria das situações sociais, não queria correr o risco de lavar uma freada novamente. Ficou neurótico.

Alex tinha vergonha até de cagar no banheiro da empresa. Entrava lá só em caso de emergência e apenas no horário de menor movimento. Se alguém entrava no toalete para escovar os dentes ou usar o mictório, Alex contraía até mesmo seus pés, para que não o identificassem em uma das cabines.

Queria ser o mais discreto possível. Odiava que quaisquer barulhos fossem amplificados pela concha acústica da privada.

Essa discrição causou-lhe um grande problema. Numa onda sustentável da empresa, colocaram um aviso na parte de dentro da porta do banheiro: "Ao sair, apague as luzes. A natureza agradece!".

Depois de comer um pacote inteiro de Doritos Sweet Chili na parte da tarde, Alex precisou ir ao banheiro. Era por volta das 17h30, um horário bem tranquilo. Pena que um cara do Departamento de Planejamento Financeiro foi escovar os dentes poucos minutos depois.

Como era esperado, Alex segurou seus ruídos.

Era realmente silencioso e seu colega não percebeu que havia gente na cabine. Saiu e apagou as luzes.

Segundos depois, apenas uma super audição poderia ouvir os sussurros desesperados do banheiro masculino:

— Ei... Alguém?

Tempos depois:

— Eeeei...

Mais tarde:

— Alô?

Num ciclo de vergonha, planos de fuga e mais vergonha, o tempo foi passando. Todos os colegas foram embora, os seguranças fecharam as portas da empresa e acionaram o alarme.

Alex passou a noite inteira sentado na privada. Cochilou algumas vezes. Pensou que tudo poderia ser resolvido se o colega tivesse percebido que ele estava lá. Culpou sua mãe mais uma vez por ser tão tímido. Resolveu ficar por lá mesmo pela vergonha que ia sentir se alguém soubesse dessa história.

No dia seguinte, esperou as primeiras luzes do dia, se limpou e fingiu que chegou mais cedo ao escritório.

Depois, fez cálculos no orçamento para utilizar uma lavanderia.